IPST quer que médicos denunciem casos suspeitos de tráfico de órgãos

Instituto Português do Sangue e Transplantação quer trabalhar com a Ordem dos Médicos para a criação de um código de conduta para que casos suspeitos possam ser denunciados às autoridades, como já acontece nas suspeitas de violência doméstica e abuso sexual de menores. Para o bastonário dos Médicos, terá de haver um regime de excepção do sigilo médico.

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O tráfico de órgãos está entre as dez principais actividades ilegais que mais lucros geram no mundo Rui Gaudêncio (arquivo)

O Instituto Português do Sangue e Transplantação (IPST) pretende que “os médicos passem a ter a obrigação de denunciar os casos suspeitos de tráfico de órgãos às autoridades judiciárias”, à semelhança do que já acontece na violência doméstica e no abuso de menores. Portugal tem em curso o processo de ratificação da Convenção do Conselho da Europa Contra o Tráfico de Órgãos Humanos, tratado que irá permitir a punição da compra e venda de órgãos e do turismo de transplantação.

O IPST está a organizar uma conferência em Abril “para debater os benefícios e desafios desta nova convenção e de sensibilizar e formar os profissionais de saúde envolvidos na transplantação, bem como os responsáveis pela investigação criminal, como é o caso da Polícia Judiciária e do Ministério Público”, explica ao PÚBLICO Ana Pires da Silva, jurista do IPST.

Em termos internacionais, o tráfico de órgãos está entre as dez principais actividades ilegais no mundo que mais lucros geram. Segundo dados do Conselho da Europa, os doentes podem pagar entre 62 mil e 140 mil euros por um órgão. Embora na Europa esta não seja uma realidade muito presente — os países têm programas de transplantação —, este é um crime que não tem fronteiras.

No caso do turismo de transplantação, explica Ana Pires da Silva — que é também o ponto focal português para os crimes relacionados com o transplante no Conselho da Europa —, “estão envolvidos geralmente três países: o do dador, pessoa que vende o rim; o do doente que viaja para comprar o rim; e o da clínica onde é realizada a colheita e o transplante”. Países como a Índia ou a China são conhecidos como “países importadores de turistas de transplante”. Trata-se de redes ilegais que se aproveitam do desespero dos doentes que procuram a cura e dos dadores que vivem em situações de pobreza extrema.

O IPST nunca recebeu qualquer confirmação formal, mas foram relatados há uns anos casos de doentes seguidos em hospitais nacionais depois de terem feito transplantes de rins em países como o Paquistão e China. Também houve casos de anúncios de pessoas que tentavam vender um rim denunciados ao Ministério Público pelo IPST.

“Os médicos que tratam os doentes no pré-transplante e no pós-transplante encontram-se numa posição única para prevenir e detectar práticas de tráfico de órgãos. No entanto, as obrigações éticas e legais para com os doentes criam desafios. Neste momento os médicos não sabem como actuar devido ao sigilo médico. E este é um problema que a maior parte dos países tem e que tem sido muito discutido”, explica.

A jurista considera que é “fundamental que os médicos sejam desvinculados do segredo médico, que passem a ter a obrigação de denúncia destes casos”, trabalho que o IPST pretende desenvolver em articulação com a Ordem dos Médicos.

“A denúncia de situações que possam levantar suspeitas [de tráfico de órgãos] terá de ser possível, terá de haver um regime de excepção do sigilo médico”, afirma o bastonário Miguel Guimarães, salientando que esta é a sua opinião e que a Ordem dos Médicos se prepara para iniciar um debate interno sobre a questão.

“Temos de discutir a questão com outros parceiros, falar com magistrados. Esta é uma matéria muito importante porque são situações que violam os direitos das pessoas e a vida humana”, salienta Miguel Guimarães, referindo que desde que é bastonário a Ordem nunca foi confrontada com nenhum relato de casos suspeitos. A capacidade económica dos portugueses faz com que esta questão tenha uma expressão muito limitada.

Lei precisa de mudar

De acordo com dados do Conselho da Europa, entre 50% a 70% dos doentes que recorreram a um transplante ilegal desenvolveram uma complicação infecciosa. E mortal em mais de 20% dos casos. “Os transplantes são feitos geralmente em clínicas clandestinas, sem condições de segurança e higiene, e com recurso a dadores que não são adequadamente estudados do ponto de vista clínico, podendo ser portadores de doenças transmissíveis”, alerta a jurista, salientando que também a saúde do dador acaba em risco, e por vezes em morte, por falta de acompanhamento médico no pós-operatório.

Ana Pires da Silva considera que “é necessário definir um protocolo de actuação” que permita aos médicos saber como devem agir perante situações suspeitas. “Os médicos têm a obrigação de prevenir e dissuadir o crime e devem alertar os doentes sobre os riscos que o tráfico de órgãos envolve para a sua saúde” e também o “risco de os doentes poderem vir a ser acusados e responsabilizados criminalmente” se recorrem a este mecanismo.

O código de conduta também deve esclarecer quando o caso suspeito é detectado já após transplante. “Se os médicos têm ou não a obrigação de tratar um doente que recorreu a um transplante ilegal fora do país e dá entrada num hospital português a precisar de cuidados médicos urgentes porque, por exemplo, contraiu uma infecção gravíssima”, exemplifica.

O Código Penal português não criminaliza de forma autónoma o tráfico de órgãos e práticas como o turismo de transplantação não estão tipificadas como crime na nossa lei. E, por isso, também a legislação terá de ser mudada para responder às exigências da Convenção do Conselho da Europa, cujo processo de ratificação está em curso. Outra das propostas do IPST é a criação de um grupo interministerial, que junte saúde e justiça, para começar a trabalhar já na revisão da legislação. “Esta proposta foi recentemente apresentada ao Ministério da Saúde, que a acolheu muito bem”, diz Ana Pires da Silva.

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