Canções instrumentais que apetece comer

Insalata Statica traz sábado à Zé dos Bois, em Lisboa, o álbum que o pianista italiano dedicou a perseguir canções instrumentais que apetece comer. Tratado melódico de um velho conhecido de Norberto Lobo, João Lobo e Jim O’Rourke.

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Giovanni Di Domenico gosta de comida. Gosta mesmo muito de comida. E há vários anos, quando um amigo de Roma lhe disse que fazia saladas estáticas – porque os ingredientes eram cortados em pedaços tão volumosos na preparação de uma salada que se tornava quase impossível mexê-la –, ficou com esse nome na cabeça, na certeza de que um dia Insalata Statica ascenderia ao estatuto de título de álbum. Giovanni acabou por aprender a acomodar o gosto de terceiros por saladas mais soltas e menos compactas, mas o nome havia de ficar suspenso na sua cabeça à espera de ser afixado numa capa.

É assim que Insalata Statica, o álbum, se inicia – “calmo e estático”. E vai, aos poucos, crescendo e tomando caminhos diversos, como se avançasse por um labirinto e procurasse a saída tacteando cenários claramente distintos. Algo que acontece porque, depois de ter composto o esqueleto de todo o disco num par de semanas em que tinha um estúdio à sua disposição, o pianista italiano foi adiando o fim a dar a esse material até que, graças a uma providencial epifania, percebeu que os seis temas que tinha criado de forma solitária, apesar dos ambientes mais ou menos discordantes, formavam uma única peça, uma suite de 40 minutos. O encadeamento dos diferentes fragmentos ficou clarificado no segundo seguinte, quando lhe apareceu como óbvia a ordenação e as ligações que se estabeleciam entre os vários trechos.

Rodeado de piano acústico, piano eléctrico, guitarra eléctrica, baixo, sintetizadores, órgãos e uma plêiade de pequenos recursos, Giovanni agarrou esse escasso período, em 2012, para fixar uma série de ideias decorrentes da sua assumida fraqueza pelas canções. Esse dado não é especialmente surpreendente tendo em conta as suas participações, por exemplo, no colectivo Oba Loba, liderado pelos portugueses Norberto e João Lobo. É uma das formações em que a notável qualidade melodista de Di Domenico se espraia com contornos mais encantatórios, emprestando a estas configurações próximas de um certo jazz de câmara uma busca pela beleza descomplicada e desarmante, como se as notas do piano pairassem sobre toda a restante instrumentação. A proximidade desses universos é atestada pelo facto de um destes temas ter transitado também para o segundo álbum de Oba Loba, Sir Richard Williams, lançado em 2017 pela editora franco-suíça Three:Four Records.

No entanto, quando saiu do estúdio com estas seis composições, Giovanni Di Domenico não sabia ainda que fim lhes poderia dar. E foi por isso que ficaram a marinar, foi por isso que o pianista lhes acrescentou vagarosamente camadas, editando as várias partes, cosendo ligações e percebendo que a finalização apenas se complicava “porque cada secção dava mais ideias e vontade de gravar mais coisas”. “Até que tive mesmo de parar, porque este era um processo que podia ter durado anos e anos”, admite.

Só que esta investigação continuada do mesmo material, que em muitos outros músicos poderia conduzir à falta de foco e a uma tendência para complicar, em Giovanni não belisca a sua acuidade melódica e não trai a matriz pop que quis primeiramente desenvolver. “Acho que todo este material concentra uma parte muito forte das minhas influências e que respeita à canção pop”, reforça. E exemplifica a atracção por aquilo que define como “a pop verdadeira”, citando a sua devoção pelos primeiros álbuns de Elton John.

E de Elton John, quase sem o percebermos, Giovanni salta para outra das suas referências basilares – Jim O’Rourke. No homem que durante cinco anos pertenceu às fileiras dos Sonic Youth, há 12 anos a viver no Japão, tão chegado à experimentação mais pica-miolos quanto à pop mais soalheira, o pianista encontrou um pensamento musical semelhante ao seu: “Mais do que a forma como compomos, temos uma maneira parecida de pensar a música, em que podemos abordar sons, ritmos e tipos de harmonização que nos tocam de alguma maneira, e ao mesmo tempo injectarmos algo nosso nesses géneros ou mundos musicais.”

Salada na estrada

Giovanni Di Domenico nem era assim tão conhecedor da obra de Jim O’Rourke quando, em 2010, em digressão pelo Japão, perguntou ao seu amigo baterista Tatsuhisa Yamamoto se este poderia marcar uma sessão conjunta para ver que música resultaria dali. O clique fez-se e com uma eficácia muito superior à que o italiano conseguiria antever: em três tempos ficaram amigos e em cada uma das suas frequentes viagens ao Japão Di Domenico visita O’Rourke para falarem sobre música, ouvirem discos em conjunto e prepararem as suas colaborações – que se dispersam por várias formações. Obrigatórios, até ao momento: o minimalismo registado em Arco (2014) e o trio mais misterioso que os une a Yamamoto e fixado em Delivery Health (2015).  

Em Insalata Statica o tom é mais expansivo. Tocado quase integralmente por Di Domenico (apesar dos muitos instrumentos que se vão entrelaçando no discorrer da peça), o disco é uma conversa solitária, um desafio que o músico se lançou quanto à sua capacidade de montar quase sem interferências uma obra que percorre pop, jazz, música erudita contemporânea ou expressões tradicionais variadas (o seu instinto rítmico, desconfia, virá dos dez anos na infância em que viveu na Líbia, nos Camarões e na Argélia) sem se fixar em nenhum desses pontos. Agora, respondendo ao impulso de levar esta música para a estrada, montou uma banda de oito elementos, que inclui o baterista português João Lobo, tal como Giovanni sediado em Bruxelas. É essa formação que actua este sábado na Zé dos Bois, em Lisboa, antecedida pelo trio Montanhas Azuis (Norberto Lobo, Bruno Pernadas e Marco Franco).

Ou seja, resolvido o desafio pessoal que se lançou num primeiro impulso, Giovanni deixa agora que a sua linguagem musical migre para outros intérpretes, mesmo que obedecendo sempre ao filtro da sua composição. Ele que se apaixonou a sério pela música quando o pai lhe ofereceu uma compilação de jazz (que incluía dois temas de Miles Davis) e largou a guitarra ao aproveitar o piano que os pais tinham alugado para a irmã mais velha praticar, quer dedicar este ano a um abrandamento do seu intenso ritmo editorial, a fim de “praticar, compor e estudar”. O primeiro sinal está dado: uma encomenda para a orquestra de câmara belga Musiques Nouvelles. O resto é ainda uma incógnita. Mas com a certeza de que chegará adornado por melodias de uma beleza impossível.

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