A honra do Partido Socialista

Tudo tem que ter um limite. O Bloco de Esquerda violou regras fundamentais da própria convivência democrática. Infelizmente não é coisa que me cause a mais leve surpresa.

Numa entrevista ao Expresso publicada no último fim-de-semana, Catarina Martins acusou o Partido Socialista, entre outras coisas, de ser um partido permeável aos grandes interesses económicos. Dada a minha presente circunstância de simples militante de base do Partido Socialista poderia ter permanecido em silêncio, eximindo-me ao desgaste de uma polémica à partida destinada a ser mal compreendida. Poderia tê-lo feito se aceitasse pagar, em nome do comodismo, o preço da indignidade e se tivesse o condão de estabelecer um corte emocional com a história do Partido a que pertenço há mais de trinta anos. O que Catarina Martins afirmou foi que o PS cede facilmente às pressões ilegítimas de grandes interesses privados e que, como tal, não garante a salvaguarda do bem comum, subvertendo assim princípios fundamentais de qualquer organização política democrática. Esta acusação não resulta de uma alteração anímica momentânea, induzida pelo errático comportamento protagonizado pelo governo e pelo grupo parlamentar do PS em torno da questão das denominadas rendas associadas às energias renováveis. Catarina Martins exprimiu nesta entrevista aquilo que o Bloco de Esquerda verdadeiramente pensa acerca do PS e verbalizou-o de um modo particularmente difamatório. Não fujamos, então, por mais inconveniente que seja para alguns, a uma discussão que tem de ser travada com seriedade.

Como qualquer grande partido político, permanentemente investido de enormes responsabilidades nacionais, o Partido Socialista tem uma história densa e complexa, insusceptível de qualquer tipo de avaliação reducionista ou caricatural. Essa história vem de longe. Começou quando essa personalidade de excepção que foi Mário Soares, ainda em pleno período de vigência do anterior regime, compreendeu a necessidade da criação de uma nova agremiação política identificada com as opções doutrinárias características do grande movimento histórico constituído pelo socialismo democrático e pela social-democracia europeia. Esse acto verdadeiramente fundador de uma esquerda de inspiração liberal e democrática revelou-se decisivo para o porvir da democracia portuguesa. Já nessa ocasião não escassearam as vozes críticas provenientes de uma esquerda anti-democrática, que nunca conviveu pacificamente com a adesão que Mário Soares, com a coragem que lhe era intrínseca, sempre manifestou pelos valores da liberdade, da democracia representativa e de um modelo de organização económica assente na convivência entre a valorização da autonomia individual e a intervenção social do Estado.

Sabemos o que foi o contributo decisivo do Partido Socialista no período pós-revolucionário para que o país optasse pela instauração de uma democracia de tipo Ocidental, baseada nos excelsos princípios da separação dos poderes, do respeito absoluto pelas mais diversas formas do exercício da liberdade individual e pela valorização de todas as manifestações de pluralismo político, cultural, económico e social. Sem o contributo do PS a nossa história contemporânea teria sido diferente e - estou disso plenamente convencido - substancialmente pior. O PS, sob a superior e corajosa liderança de Mário Soares, enfrentou a ameaça autoritária dos providencialistas de esquerda com o mesmo vigor com que tinha combatido o regime de extrema-direita que vigorou até ao 25 de Abril de 1974. Soares podia transigir nos pormenores, mas era felizmente intratável quando se tratava de lutar pela democracia, pela liberdade e pelo integral respeito pelos direitos humanos. Foi isso que fez dele a maior figura pública da nossa vida democrática e a referência insubstituível de quantos se reconhecem nos valores e princípios da esquerda democrático-liberal.

Ao longo das últimas décadas, o PS contribuiu decisivamente para a modernização do nosso país, para a consolidação de um regime democrático que garante a protecção dos direitos fundamentais, para a edificação de um Estado Social que promove a igualdade e contraria a injustiça social. Esse é um legado histórico que ninguém em seu perfeito juízo pode pôr em causa.

Ao mesmo tempo, foi com o Partido Socialista que o país avançou resolutamente rumo à integração europeia, com tudo o que isso significa de avanço histórico, senão mesmo civilizacional. Em muitos momentos foi necessário enfrentar adversários poderosos, superar obstáculos deveras complicados e ultrapassar hesitações porventura compreensíveis. Nunca nada é linear na história de um povo. Contudo, mau grado as dificuldades e as resistências encontradas, Portugal transformou-se, passando de um país arcaico, mentalmente pequeno e politicamente fechado para um país aberto ao mundo, amplamente modernizado em múltiplas dimensões e capaz de garantir um mínimo de dignidade a cada um dos seus cidadãos.

Não sou um fanático, repugna-me demasiado o sectarismo para algum dia poder afirmar que tudo isto foi obra de um só partido. Não embarco sequer na nova e simplista mitologia que tende a opor de forma demasiado primária a esquerda e a direita portuguesas. Fizemos um caminho conjunto, o que não exclui o pluralismo, a oposição e a adversidade. Do que estou certo é que nesse caminho, de que no geral nos devemos orgulhar, o Partido Socialista ocupou um lugar fundamental.

Durante este já longo período histórico, alguns cometeram erros e praticaram actos condenáveis em nome do PS - nalguns casos em representação política do PS. O reconhecimento de tal evidência não nos pode levar, contudo, à abjuração daquilo que foi e é o essencial da acção política que levamos a cabo há mais de quarenta anos no nosso país. É por isso que, na condição de militante de base do PS, não estou disposto a permanecer calado perante as declarações caluniosas proferidas pela líder da extrema-esquerda portuguesa. Não só não me calo como explicitamente as combato.

Imbuída de uma cultura marxista básica, que associa despudoramente com uma moral de sacristia, Catarina Martins procura instalar a ideia de que a esquerda se divide entre o mundo angelical em que ela própria se passeia e o universo potencialmente demoníaco em que rastejam os malfadados herdeiros da tradição socialista e social-democrata, sempre prontos a soçobrar ao apelo dos mais tenebrosos e ocultos interesses particulares. Essa dicotomia rasteira caracterizou ao longo do século XX grande parte da relação entre a esquerda totalitária e a esquerda de inspiração liberal e democrática. Tudo tem que ter um limite. O Bloco de Esquerda violou regras fundamentais da própria convivência democrática. Infelizmente não é coisa que me cause a mais leve surpresa. Se bem que hoje não exerça nenhuma função na direcção do Partido Socialista, aqui deixo o registo da minha indignação, que estou certo será partilhada por um grande número de portugueses, o qual extravasa em muito o universo restrito dos militantes do PS.

 

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