Putin venceu, Assad fica, ONU nada pode fazer e EUA não querem saber

O que parecia estar a desenhar-se como inevitável surge agora como uma certeza. Já ninguém vai exigir a queda do ditador sírio e Moscovo garantiu o papel de nova potência no Médio Oriente.

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Para quem ainda acredita numa Síria livre de facínoras islamistas ou laicos, as conversações que deveriam ter arrancado terça-feira em Genebra e foram adiadas um dia à espera da delegação do regime, não são mais do que um exercício de boas intenções e fracasso garantido. Mesmo porque já não é na mesa de Genebra que se joga nada: as verdadeiras negociações decorrem em Astana, onde a Rússia juntou sírios, iranianos e turcos e onde se prepara um futuro Congresso sobre a Síria, previsto para Dezembro, em Sochi.

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Para quem ainda acredita numa Síria livre de facínoras islamistas ou laicos, as conversações que deveriam ter arrancado terça-feira em Genebra e foram adiadas um dia à espera da delegação do regime, não são mais do que um exercício de boas intenções e fracasso garantido. Mesmo porque já não é na mesa de Genebra que se joga nada: as verdadeiras negociações decorrem em Astana, onde a Rússia juntou sírios, iranianos e turcos e onde se prepara um futuro Congresso sobre a Síria, previsto para Dezembro, em Sochi.

É verdade que a oposição ao ditador se apresenta pela primeira vez numa frente verdadeiramente unida – mas também é um facto que a mudança de liderança no Comité de Altas Negociações levanta a suspeita que todos, mesmo os opositores no exílio, se estarão a preparar para desistir de afastar Bashar al-Assad (algo que muitos opositores no terreno e milhões de deslocados e refugiados recusarão sem nada poderem fazer).

Riyad Hijab, substituído por Nasr Hariri, sugeriu num comunicado que tinha sido pressionado para fazer concessões a favor de Assad. Numa declaração conjunta que saiu de uma conferência em Riad, na sexta-feira, lia-se que “os participantes sublinham que a transição não pode acontecer sem a saída de Assad e do seu círculo próximo no início do período interino” ou de transição até à realização de eleições. Ora, Hariri já disse aos jornalistas que a oposição está pronta a discutir “tudo o que aparecer na mesa de negociações”, sem qualquer pré-condição.

Foi à espera desta declaração que a delegação enviada por Assad atrasou a sua partida de Damasco. “Sem pré-condições”, foi também assim que o enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, promotor da ronda de conversações de Genebra, descreveu a nova tentativa. Claro que para De Mistura isto significa dentro do enquadramento das resoluções já aprovadas pelo Conselho de Segurança.

A ideia é avançar nos debates sobre uma nova Constituição e as eleições, que serão supervisionadas pelas Nações Unidas, sem deixar de abordar a questão dos detidos, raptados e desaparecidos. Em simultâneo, como sempre, há questões humanitárias urgentes, como a ajuda a área cercadas ou de difícil acesso, incluindo Ghuta Oriental, nos subúrbios rurais de Damasco.

Em teoria, Vladimir Putin já se comprometeu com umas eleições monitorizadas pela ONU e com a participação de todos os sírios, incluindo a metade da população deslocada pela guerra, deixando a Administração de Donald Trump aliviada. A verdade é que ninguém acredita que as eleições terão esse formato ou sejam de facto livres – se o fossem, Assad perderia.

Há coincidências que dificilmente o são. Por exemplo, a substituição de Riyad Hijab por Nasr Hariri na liderança do comité negocial da oposição no exílio precisamente quando Assad surgia na televisão ao lado de Putin em Sochi, um encontro caloroso e marcado com um abraço para celebrar as vitórias no terreno e falar do futuro. Isto na mesma cidade onde o Presidente russo recebeu os chefes de Estado da Turquia e do Irão para discutir a Síria.

“É importante que alcancemos um acordo político agora, e Assad está pronto para trabalhar com quem quer que deseje a paz”, afirmou Putin. Agora, quando o seu aliado está fortalecido pelos sucessos nos confrontos contra os jihadistas do Daesh e a recuperação de vastas zonas de território, no fim de dois anos em que o apoio russo e iraniano serviu para reverter as conquistas dos grupos da oposição.

Vitória pode não significar vitória na Síria. Mas se alguém já venceu aqui é sem dúvida Putin, mantendo indefinidamente o regime Assad no poder, garantindo uma plataforma aos russos no Médio Oriente e assegurando a marginalização dos Estados Unidos.

Para além dos turcos (zangados por causa das relações entre a Rússia e os curdos – e porque sempre quiseram ver Assad fora – mas suficientemente convencidos da necessidade da aliança actual com Moscovo para o engolir) e dos iranianos, até a Arábia Saudita se juntou à festa. Foi Riad que orquestrou as mudanças na chefia da oposição, afastando uma dezena de líderes que recusavam aceitar a permanência de Assad (sabendo estar a oferecer assim a Síria ao arqui-rival Irão, pelo menos para já).

Isto chama-se sucesso

Claro que ainda há oposição armada ao regime, debilitada, desmoralizada, mas viva. E aqueles que os EUA escolheram não abandonar – os curdos – controlam a maioria das reservas de petróleo e gás, o que dificultará a vida a Assad quando quiser investir a sério na reconstrução. Damasco pode ficar mais pobre e, por isso, menos forte, mas Washington continuará a alienar ainda mais turcos, sírios e iraquianos se mantiver este apoio aos curdos.

Se os EUA têm algum plano para a região estão a fazer um grande bluff. Logo depois do abraço entre Putin e Assad, Trump falou ao telefone com o líder russo. A seguir, defendeu com entusiasmo os planos de Moscovo para a Síria, em teoria, os mesmos da ONU, com a redacção de uma nova Lei Fundamental e preparativos para uma ida às urnas. Sem sequer parecer dar-se conta que quem vence não é só a Rússia – é também o Irão.

Apesar da “fraqueza da oposição” e da “incoerência dos EUA”, ainda é possível que Putin “falhe como arquitecto de um acordo na Síria”, escreve o jornal The Washington Post em editorial. “Por agora, contudo, a Rússia suplantou os EUA como a potência capaz de congregar vontades no conflito mais importante do Médio Oriente”.

Ou como escreve o correspondente da BBC para temas de diplomacia, Jonathan Marcus, “a Rússia está de regresso ao palco mundial e, se pusermos de lado a miséria e o sofrimento na Síria, para os quais contribuíram todos os actores, no manual de estratégia de Putin a isto chama-se sucesso”.