“Não é desejável manter as crianças 365 dias do ano dentro das instituições”

O encerramento de dois lares da Casa Pia nos últimos 18 meses não está relacionado com falta de segurança e de acompanhamento dos jovens, diz a presidente da Casa Pia de Lisboa, Cristina Fangueiro. "Foi uma opção de gestão."

Foto
Cristina Fangueiro preside à Casa Pia desde 2010 Nuno Ferreira Santos

Cristina Fangueiro assumiu a presidência do Conselho Directivo da Casa Pia de Lisboa em 2010. Continuou a aplicar o modelo iniciado pela sua antecessora, Joaquina Madeira, que assumiu o cargo depois de Catalina Pestana em 2005: reduzir a dimensão dos lares para crianças ou adolescentes e fazer da institucionalização uma "resposta de passagem", como recomendado no relatório do conselho técnico-científico, presidido por Roberto Carneiro, em 2003, logo após o escândalo de pedofilia. A "desmassificação e restituição da escala humana à instituição", defendidas nesse documento, resultou na saída das crianças e jovens dos colégios internos para lares exteriores, na comunidade. Para a actual presidente, o balanço dessas e de outras mudanças é positivo. Porém, admite: a instituição não tem capacidade de garantir protecção às crianças em todas as situações de acolhimento.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Cristina Fangueiro assumiu a presidência do Conselho Directivo da Casa Pia de Lisboa em 2010. Continuou a aplicar o modelo iniciado pela sua antecessora, Joaquina Madeira, que assumiu o cargo depois de Catalina Pestana em 2005: reduzir a dimensão dos lares para crianças ou adolescentes e fazer da institucionalização uma "resposta de passagem", como recomendado no relatório do conselho técnico-científico, presidido por Roberto Carneiro, em 2003, logo após o escândalo de pedofilia. A "desmassificação e restituição da escala humana à instituição", defendidas nesse documento, resultou na saída das crianças e jovens dos colégios internos para lares exteriores, na comunidade. Para a actual presidente, o balanço dessas e de outras mudanças é positivo. Porém, admite: a instituição não tem capacidade de garantir protecção às crianças em todas as situações de acolhimento.

Dois lares foram fechados desde o ano passado. Porquê?
Por opções de gestão.

Quando fecham, o que acontece às crianças?
Informamos o tribunal que vamos encerrar a casa e ficamos com elas. Nós temos que acomodar as crianças, e nunca ficamos em sobrelotação, fazemos as mudanças de acordo com aquilo que causa menos problemas, de acordo com cada um dos projectos de vida de cada criança. Fomos ver qual era a situação de cada uma delas para as colocarmos nas melhores circunstâncias possíveis, no melhor sítio possível. O fecho das casas implicou manter as crianças, a não ser nos casos em que existiam condições para acelerar a ida da criança para o meio natural de vida, a família. Alguns jovens foram para a pré-autonomia, em casas ou apartamentos.

Os fechos não estão relacionados com problemas nas casas?
Todas as casas têm problemas. Todas vivem momentos de grande dificuldade e todas têm momentos de grande satisfação. Na noite de Halloween, por exemplo, um dos nossos jovens saiu e quando voltou veio acompanhado de um bando de miúdos que partiram a casa toda. O que os trouxe era nosso filho, temos que ficar com ele até que haja uma decisão do senhor juiz do Tribunal de Família e Menores. Mas os meninos não saem das casas por haver problemas. Os meninos que saem da Casa Pia só saem por ordem do tribunal.

Como aconteceu no caso de uma menina em Lisboa que se colocava em perigo de forma persistente?
Essa adolescente andava constantemente desaparecida. Demos baixa dela porque não tínhamos forma de saber dela. Não sei se voltou para a família. Não sabemos absolutamente nada. Saiu porque estava em fuga. Num quadro de fugas reiteradas, podemos dar baixa com autorização do tribunal. Participámos a situação ao tribunal que autorizou a sua saída da Casa Pia.

Antes disso, o que fez a Casa Pia para a ajudar?
O que pôde e o que não pôde. Nós estávamos completamente impossibilitados de nos responsabilizar pela situação. Não estávamos capazes de cuidar dela. Quando assim é, dizemos ao tribunal que estamos incapazes de nos responsabilizar pela protecção da criança ou do jovem.

Também aconteceu com um menino de 12 anos que está agora num centro educativo. Fazia fugas prolongadas e havia outro tipo de suspeitas de que ele próprio seria vítima. O que foi feito para o proteger?
A Casa Pia desconhece o que aconteceu. Fizemos o que tínhamos a fazer. Fizemos o nosso papel. Comunicámos a suspeita que tínhamos de que ele poderia estar a ser aliciado para prostituição. A suspeita não ficou provada e o suspeito continua livre. Nós suspeitávamos e participámos, o processo está no DIAP [Departamento de Investigação e Acção Penal]. Nada se comprovou, a não ser os delitos por ele cometidos, como furtos. O tribunal aplicou-lhe uma medida tutelar educativa de 18 meses num centro educativo em Lisboa, de onde não pode sair.

Quantos processos de promoção e protecção na Casa Pia foram encerrados por motivo de fugas prolongadas das residências?
A Casa Pia de Lisboa não dispõe de indicadores tratados relativamente ao número de crianças e jovens que cessaram a permanência no nosso acolhimento, tendo por motivo ausências prolongadas. Os casos que tivemos são residuais — em média, não mais do que dois ou três por ano. Temos também nota de casos em que a Casa Pia conseguiu reverter estes comportamentos de ausências, estando as crianças e jovens mais apaziguadas com a sua condição de acolhidos.

A protecção subjacente ao acolhimento não ficou comprometida com as mudanças dos últimos 15 anos que levaram, entre outras coisas, à substituição dos colégios internos por residências no exterior, na comunidade?
A Casa Pia iniciou o movimento de deslocalização das casas de acolhimento de dentro dos Centros de Educação e Desenvolvimento (CED) em 2004 e 2005, por considerar que a vivência das crianças em acolhimento deve ser o mais semelhante possível às de uma criança integrada numa família. O conceito de “intramuros” reporta ao facto de as casas estarem integradas no mesmo espaço geográfico onde o CED desenvolve as respostas educativas e formativas.

Isso não resultou em mais situações comunicadas às entidades judiciais?
Em 2016, para além das comunicações regulares, participámos 34 situações — comportamentos disfuncionais, agressões, roubos, fugas reiteradas — às comissões de protecção de crianças e jovens e ao Ministério Público, que envolveram 33 crianças. Em 2017 participámos 19, e nessas estiveram envolvidas 24 crianças. 

Estas situações não justificam por si só um acompanhamento mais próximo destes jovens que reforce o argumento a favor dos colégios internos?
A intervenção em matéria de acolhimento não pode nem deve ser realizada em instituições fechadas, totalitárias e centradas em si. A vida das pessoas faz-se nas comunidades, frequentando as escolas públicas, os centros de saúde, os clubes desportivos. Essa vivência de usar transportes públicos, circular nas ruas e jardins, cumprimentar os vizinhos são experiências de vida normais às crianças. Não é desejável manter as crianças 365 dias do ano dentro das instituições e a trazer os serviços para dentro, mas sim proporcionar às crianças a vida na comunidade. Trata-se de uma afirmação sustentada em estudos académicos e doutrinas científicas, defendidas um pouco por todo o mundo desenvolvido.