Luanda-Lisboa-Luanda: a tripulação que ajudou a erguer a ponte aérea de 1975

A poucos dias da independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, a TAP mantinha os voos da ponte aérea que transportou milhares de portugueses no pós-25 de Abril. A acompanhá-los estavam as tripulações. São estes antigos trabalhadores da companhia aérea portuguesa que ajudam a contar a história.

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A 11 de Novembro de 1975, dia da independência de Angola, Antero Loureiro já não estava no país. Tinha embarcado dois meses antes no Boeing 747 da TAP para regressar a Portugal e nunca mais pôs os pés no Lobito, onde tinha chegado com os pais e as duas irmãs aos quatro anos de idade.

Em 1972, estava Antero com 27 anos, tornou-se funcionário do departamento de contabilidade da companhia aérea portuguesa na delegação da África do Sul. Pediu transferência para Angola para ficar próximo da então namorada, actual mulher. Três anos depois, acontecia a revolução em Portugal e ele estava destacado para trabalhar na ponte aérea entre Luanda e Lisboa, operação que durou cerca de sete meses — em 1975, os voos da TAP foram reforçados entre Maio e 3 de Novembro. Em Moçambique, também acontecia outra ponte aérea, embora com “menos pessoas e menos concentrada”, segundo o sociólogo Rui Pena Pires, um dos autores do livro Os Retornados. Um Estudo Sociográfico (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1987). 

“Durante dois anos vim várias vezes a Portugal para fazer os cursos profissionais da companhia. Os últimos englobaram a emissão de bilhetes e reservas, para começar a atender o que começou a ser a ponte aérea”, recorda agora Antero Loureiro. Já em 1974, o fluxo de portugueses que queriam voltar para Portugal, receosos da luta armada entre os três movimentos de libertação de Angola (MPLA, UNITA, FNLA), obrigava Antero a ter novas funções e a mais horas de trabalho. “As portas [do aeroporto] fechavam e nós continuávamos a atender os passageiros, as filas chegavam a ter umas centenas de metros”

Numa primeira fase, a vinda de portugueses das ex-colónias fazia-se de forma controlada e calma. Entre Maio de 1974 e Maio de 1975, 132.110 passageiros viajaram com a TAP de Angola para Portugal. Os bilhetes eram comprados, como para qualquer outra viagem de avião, e os bens eram transferidos através dos navios atracados nos portos angolanos. Até 9 de Novembro de 1975, 20 navios cargueiros transportaram 260.600 metros cúbicos de carga e 16.527 viaturas chegaram em oito navios. Lobito, Moçamedes (atual Namibe) e Cabinda eram alguns dos locais de onde partiam os bens dos portugueses.

Com a intensificação da violência em várias cidades angolanas, contra os portugueses e entre os movimentos independentistas, o aeroporto de Luanda tornou-se incomportável para tamanha onda humana.

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Antero Loureiro no Lobito dr

“No mês de Julho de 1975, a TAP atingira o limite máximo da capacidade de transporte de passageiros, na linha de Angola, sendo que tal limite ficava muito aquém da procura que se estimava crescer, imparável, até ao dia da independência”, explica-nos por email o general António Gonçalves Ribeiro, coordenador da ponte aérea e então secretário-geral do Alto-Comissariado de Portugal em Angola. “Os relatórios que ia recebendo da comissão administrativa da TAP ou da direcção do IARN [Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, criado em Março de 1975] não eram nada animadores quanto à satisfação da crescente e imparável necessidade de novos meios de transporte aéreo”, acrescenta. 

António Gonçalves Ribeiro decide, por isso, arregaçar as mangas: viaja até Lisboa, fala com o Presidente da República, general Costa Gomes, e por iniciativa própria e já com autorização presidencial faz um pedido de ajuda à embaixada norte-americana. Em Setembro de 1975, aviões de companhias aéreas dos Estados Unidos da América, Reino Unido, antiga União Soviética, antiga República Democrática Alemã (RDA) e República Federal Alemã (RFA), França e Bélgica juntam-se à frota da companhia portuguesa em Angola, na altura com 14 aviões: dez Boeing 707 e quatro Boeing 747.

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No aeroporto de Luanda, 1975. A TAP operava com dez Boeing 707 e quatro Boeing 747, e durante a ponte aérea várias companhias prestaram auxílio na retirada dos portugueses de Angola cortesia arquivo David Ferreira

Aviões em fila na pista

O sociólogo Rui Pena Pires acredita que a ponte aérea foi o resultado de uma emergência e de um êxodo que ninguém previa. “Estamos a falar de uma altura em que o Estado tinha praticamente colapsado, não havia capacidade para fazer outra coisa. Fez-se o possível. Estávamos a viver um período duplamente complicado: de grande instabilidade política em Portugal e de resolução dos problemas coloniais”, explica.

“Os voos comerciais da TAP, se bem que reforçados, tinham ficado aquém das expectativas. O pessoal de terra estava exausto e passava por vexames de toda a ordem, chegando a sofrer tentativas de agressão”, realça o general António Gonçalves Ribeiro. No Verão de 1975, terá começado oficialmente a ponte aérea entre Luanda e Lisboa. Aí, começava também um dos maiores desafios para centenas de trabalhadores da TAP: a maioria em início de carreira, habituados a voos de longo curso, mas com idades que não ultrapassavam os 30 anos.

“A triagem em terra era muito complicada quando ocorreu o êxodo maciço, perto da independência. Os aviões estavam em fila na pista e era preciso enchê-los”, recorda Antero Loureiro. As listas de espera sucediam-se e os passageiros não paravam de aparecer no aeroporto. Começaram-se a definir prioridades: doentes, crianças e mulheres grávidas seriam os primeiros a embarcar.

Antero Loureiro, já como promotor de vendas da companhia aérea, não queria sair do seu escritório, no interior do aeroporto de Luanda, e contactar directamente com os passageiros. “Eu evitava a todo o custo [sair] porque havia muita gente no aeroporto”, diz. A recusa servia-lhe de “protecção”: “No plano emocional, era muito complicado. Evitava passar por crianças. Quando tinham a noção de que podiam ser desapegadas do pai ou da mãe, eram cenas diabólicas. Eu procuro esquecer, mas é impossível.”

Havia quem tentasse oferecer bens materiais aos trabalhadores da TAP em troco de um lugar no avião; e havia quem quisesse embarcar com tudo o que tinha. “Os passageiros apareciam com cadeiras e mesas. Não tinham noção do que era o porão de um avião.” Antero recorda ter conversas como esta:

— Vocês levam 20 ou 30 quilos de carga e o avião cai.
E o resto?
O resto fica em terra.

Para a historiadora Maria Inácia Rezola, “toda esta história tem uma saqueta muito dramática, que não foi nem será apagada da memória colectiva”. A investigadora do Instituto de História Contemporânea, que se tem dedicado aos temas da Revolução, democracia, colonialismo e memória, refere que as imagens do cais de Alcântara, em Lisboa, repleto de contentores com os bens dos portugueses vindos das ex-colónias, são um símbolo dessa tragédia.

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Aeroporto de Luanda, 1975. As Forças Armadas Portuguesas garantiam a segurança. Todos queriam trazer os seus bens, por avião, barco cortesia arquivo david ferreira

“Amanhã vamos embora"

De acordo com os dados divulgados no livro A Vertigem da Descolonização – Da Agonia do Êxodo à Cidadania Plena, escrito pelo general António Gonçalves Ribeiro (Editorial Inquérito, 2002), 905 voos aconteceram durante a ponte aérea de 1975. A TAP fez 451 voos num total de 65.438 passageiros , seguida pelos governos estrangeiros que apoiaram a operação com 265 voos 47.306 pessoas. Os Transportes Aéreos de Moçambique (TAM) fizeram 17 voos e outras companhias aéreas estrangeiras mais 172.

Em 1975, Rui Benevides, nascido em Luanda, estava como assistente de tráfego da TAP. Viu milhares de portugueses a viajarem para Portugal: alguns de regresso, outros que iriam estar pela primeira vez na metrópole. Também ele acabaria por embarcar para Lisboa, a 6 de Novembro, cinco dias antes de Agostinho Neto se tornar o primeiro Presidente de Angola.

“Foi o desespero total, as pessoas sem saber o que fazer à vida, a chegarem aos aeroportos [Luanda e Nova Lisboa] e a entregarem as chaves dos carros a outras pessoas”, relembra Rui, hoje com 70 anos. Ele queria ter ficado em Luanda, não ser forçado a arrumar as memórias de Angola. Mas numa noite alterou-se-lhe o futuro. Depois de um dia de trabalho, estava a conduzir de regresso a casa quando foi mandado parar por três homens armados, perto da Farmácia Maculusso no Bairro do Café (Luanda): “Pensei: ‘Vão-me roubar o carro.’ Não roubaram, eu saí do carro e comecei a falar com eles.” Deixaram-no seguir viagem. Assim que chegou a casa, disse ao pai: “Amanhã vamos embora.”

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Em 1975, Rui Benevides, nascido em Luanda, estava como assistente de tráfego da TAP dr

Aos 25 anos, Rui nunca tinha imaginado viver fora de Luanda. O pai, Walter Pereira Inácio, vendera tudo o que tinha em Portugal para criar raízes e investir na então província ultramarina. Foi contabilista de uma das maiores empresas de café de Angola, mas recusou-se a acreditar que o fim de Império significaria o fim de uma vida em Luanda. “O meu pai não quis vender nada à conta de acreditar naquele futuro [de Angola].”

Tal como Rui Benevides, muitos funcionários da companhia aérea portuguesa que residiam em Angola tinham livre-passe para regressarem a Portugal com as suas famílias. Bastava falarem com os comandantes dos aviões. E, dia após dia, mais um trabalhador da TAP deixava Angola. Eduardo Nascimento, que muitos se lembrarão por ter ganho o Festival da Canção em 1967 com O Vento Mudou, integrava as equipas de pessoal de terra durante a ponte aérea. “Todos os dias apareciam dez pessoas que se metiam no avião e iam-se embora, todos os dias eu tinha menos gente para trabalhar. Fez-se um sacrifício enorme para as pessoas irem ficando”, explica este antigo funcionário.

Outras delegações da TAP foram, por isso, contactadas para participar na ponte aérea. Eduardo recebeu duas colegas de trabalho de Lisboa “que nunca tinham ido a Angola” e outra colega de Londres para ajudarem na operação de evacuação. “Eu não me queria ir embora. Eu trabalhava na TAP há quatro anos e já tinha uma certa ligação política com o próprio MPLA. Tinha as minhas convicções. Estava a ajudar o meu país [Angola], independentemente de onde estava a trabalhar”, explica.

Nascido em Luanda, mas com ascendência portuguesa pelo avô materno, Eduardo Nascimento só haveria de ir para Portugal em 1985. Para ele, o processo da ponte aérea tornou-se irreversível com a descolonização. Os trabalhadores da companhia “estavam mais do que preparados” para receber todos aqueles portugueses. “Luanda, naquela altura, já era a maior estrutura da TAP no exterior. Quase como Lisboa. Estava preparada”, conclui.

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Se em Angola a ânsia de embarcar no próximo avião dava origem ao caos, em Portugal os colchões amontoavam-se no aeroporto, sobretudo para quem que não conhecia nada nem ninguém em Portugal arquivo público

Centenas a dormir no chão

Entretanto, Lisboa era o epicentro do Verão Quente. “A revolução ainda estava a acontecer, com tudo em aberto, civis e militares em confronto. Nada estava decidido quando começa a ponte aérea”, esclarece a historiadora Maria Inácia Rezola.

Cristina Carvalho trabalhava em Lisboa, no posto de emissão de bilhetes e reservas. Se em Angola a ânsia de embarcar no próximo avião dava origem ao caos, em Portugal os colchões amontoavam-se no aeroporto, sobretudo para quem que não conhecia nada nem ninguém em Portugal. “Era uma situação absolutamente inesperada, insólita e de desgraça. Todos os dias, aquele aeroporto com centenas de pessoas a dormirem no chão: crianças a viver ali dias a fio com os seus pais”, recorda.

Os funcionários em terra, já em Portugal, eram bombardeados com perguntas: quando existiriam lugares no próximo avião para o resto da família (que ainda permanecia em Angola); quando poderiam eles próprios regressar ao país da terra vermelha. A antiga loja da TAP, na Praça Marquês de Pombal, tornou-se outro ponto de passagem. “[A loja] Era um pandemónio, porque as pessoas entravam por ali dentro a gritar que queriam bilhetes, queriam que viessem as famílias, tornou-se um sufoco”, recorda a antiga funcionária. Na altura com 25 anos, Cristina Carvalho e os colegas de terra juntavam dinheiro para darem comida, bolos e vinho aos que faziam do aeroporto uma casa temporária.

A integração dos chamados “retornados”, portugueses que efectivamente regressavam a Portugal, terá demorado cerca de quatro anos. Para o sociólogo Rui Pena Pires, o processo de repatriamento foi um dos mais bem-sucedidos dentro do mesmo tipo e tendo em conta a dimensão da população portuguesa. “Estes retornados não chegam a Portugal como chegam os retornados da Argélia a França, que tem uma sociedade já estabilizada, com as instituições a funcionarem de forma rotineira”, diz. Portugal vivia na instabilidade social, política e económica, “o país estava em mudança: a entrada nas hierarquias estava aberta, isso permitiu que os retornados, na expectativa de recuperarem posições de prestígio social e de poder, o conseguissem fazer. Não era uma sociedade bloqueada à mobilidade”, explica Rui Pena Pires.

“Mal chegavam ao avião, desabafavam connosco”

Fenella Bhawnani, assistente de bordo, já estava habituada a fazer voos de longo curso, fosse para Nova Iorque, Rio de Janeiro ou Luanda. “Os aviões vinham a abarrotar, com gente que estava há dias no aeroporto, à espera de ter lugar para regressar a Portugal. Alguns fugiam das fazendas, das suas casas, muitas vezes com a roupa que traziam no corpo, e dentro do avião quase se sentiam em casa e desabafavam connosco”, recorda.

As operações de médio e longo curso faziam-se a bordo de aviões como o Boeing 747, mais conhecido por Jumbo (o maior e com mais lugares), e o Boeing 707. Entre Luanda-Lisboa e vice-versa, podiam passar 24 horas ou mais, o que implicava ter uma tripulação reforçada, com duas equipas de 12 a 17 pessoas. Até esta altura, o upper deck (plataforma superior do avião) servia a antiga primeira classe da TAP, onde os clientes mais abastados podiam usufruir de um bar e de outras comodidades. A partir da ponte aérea, este espaço foi reconvertido em zona de descanso para a tripulação, com colchões de borracha para dormirem. Enquanto uma equipa trabalhava, a outra descansava — cada voo demorava em média sete horas.

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Fenella Bhawnani era assistente de bordo. Num dos voos cuidou de uma criança prostrada apenas com os medicamentos que tinha disponíveis a bordo dr

Os relatos dos passageiros e as horas de trabalho a mais não deixavam que Fenella descansasse. “Eu lembro-me de que muitas vezes chegava a casa, e para além do cansaço físico, de quase 24 horas seguidas, porque não conseguíamos dormir em condições [upper deck], eu não conseguia descansar com o stress todo, por tudo aquilo que me contavam.”

Ainda se lembra do que lhe contou uma mulher grávida de seis meses, que chegou pelo próprio pé ao aeroporto de Luanda. Vivia numa zona de mato, viu várias pessoas morrer à sua frente e a chegada ao avião tinha sido tudo menos pacífica. “Mostrou-me os braços arranhados das silvas, por onde ela andou a correr”, afirma a antiga assistente de bordo.

Até aos primeiros voos da ponte aérea, muitos tripulantes não sabiam com que tipo de operação estavam a lidar. “Vi um miúdo prostrado no chão do avião. Eu era novata, era uma simples assistente, fui falar com o supervisor: ‘Olhe tenho uma criança na minha zona, com umas pintinhas, parece sarampo, e está a arder em febre.’ Fenella cuidou da criança, com os medicamentos que tinha disponíveis a bordo.

Chegar ao aeroporto de Luanda durante a guerra civil significava desligar as luzes do avião no momento da aterragem. “Nós não tínhamos seguro de guerra. Éramos tripulantes a fazer um trabalho de profissionais de evacuações de cenários de guerra”, explica Helena Vasconcelos, também assistente de bordo durante a ponte aérea.

O trauma dos passageiros iria pesar-lhe mais tarde, quando regressasse a casa: “Eu chegava e chorava, chorava, chorava, porque vinha tão cansada e tão chocada com o que via e ouvia.” Das histórias que traz na memória, recorda o dia em que o avião da TAP levou um grupo de leprosos para Portugal. Ou do momento em que conheceu um grupo de passageiros que partiu do Lobito num barco de pesca, e “chegaram a Luanda completamente desidratados, com crianças doentes”.

Helena tinha 24 anos e assume ter recebido uma lição de humildade. “Fui sempre uma menina muito protegida. Aprendi, naqueles momentos, muito sobre o drama da vida.” Mas assume, convicta: “Eu não rejeito nada estas recordações, tenho até um certo orgulho na maneira como toda a gente se comportou.”

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Avião da Aeroflot no aeroporto de Luanda. Vários países prestaram apoio durante a ponte aérea cortesia arquivo david ferreira

Leve o bebé

Carlos Reis, delegado da TAP para Angola e São Tomé e Príncipe, foi o interlocutor de António Gonçalves Ribeiro para a coordenação da operação aérea em terra. Ambos terão tido encontros frequentes para “identificar as áreas que careciam de intervenção e fixar prioridades”, além de Luanda. “O mar de gente que do interior convergia para Luanda e se aglomerava confusamente na aerogare carecia de ser reduzido. A forma mais eficaz, mas inovadora, de o conseguir era operar um outro terminal aéreo intercontinental, que nunca existira fora de Luanda. O tempo não estava para demoras. Nova Lisboa/Huambo foi a cidade escolhida”, recorda Gonçalves Ribeiro.

As Forças Armadas Portuguesas garantiam a segurança nos aeroportos, mas, em Nova Lisboa, o terminal aéreo não dispunha de condições — os passageiros não tinham onde dormir, o que comer ou onde fazer a higiene pessoal — e as forças dos movimentos independentistas estavam mais presentes. “As pessoas em Nova Lisboa ainda estavam em piores condições do que as de Luanda. Era de lá que vínhamos uma vez, em que aterrámos em Luanda para reabastecer: puseram-se os passageiros na rua para embarcarem outros e isso deu um motim. As pessoas invadiram a pista e foi bastante sério, queriam embarcar à força. As escadas cheias de gente, em risco de caírem, os tripulantes a quererem fechar a porta e a não conseguirem. Foi muito mau”, recorda Leonor Travassos, também assistente de bordo.

O actual Huambo ainda teve ligações directas para Lisboa, mas, quando era necessário reabastecer de combustível, tornava-se obrigatório parar em Luanda. “O que mais me surpreendeu foi um dos hangares de Nova Lisboa que parecia um campo de prisioneiros da Segunda Guerra Mundial, uma coisa absolutamente triste”, diz José Morgado, co-piloto da TAP em 1975. “Estou convencido de que um dia levei um contingente do MPLA a bordo, não estavam armados ou fardados”, acrescenta.

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José Morgado era co-piloto dr

José Morgado tinha entrado na TAP em 1970, depois de ter feito o serviço militar na Força Aérea. Foi directamente encaminhado para os voos de longo curso. Durante a ponte aérea, o co-piloto via do cockpit os passageiros portugueses a embarcarem para o avião, mas raramente contactou com algum deles. Os pilotos falavam, no entanto, entre si. E há histórias que lhe foram transmitidas. Como a de um bebé entregue a um tripulante em Angola, num discurso que recorda:

— Por favor, leve o bebé.
— Mas o que eu faço quando chegar a Lisboa?
— Há-de estar alguém lá à espera.

E estava. Fizeram a descrição do familiar do bebé, através de um rádio amador, e após sete horas de voo aquela vida resolveu-se.

O co-piloto aterrou durante a ponte aérea em Luanda e em Nova Lisboa, dois dos locais em Angola com terminais aéreos. De um colega comandante guarda também esta memória: “Num dos últimos voos de Nova Lisboa, um miúdo com um cão sobe as escadas do avião e diz ao comandante: ‘Eu quero ir consigo, aqui eles matam-me’.” O jovem embarcou. Mais tarde, aquele comandante perfilhou-o.

Durante três meses a viajar na ponte aérea, Leonor Travassos, hoje com 67 anos, pensou que nunca mais conseguiria voar após a operação de retirada dos portugueses. “Pensava no avião e dava-me vontade de vomitar, tive um esgotamento físico e psicológico. Fiquei um mês de baixa. Sentia o cheiro do avião e sentia-me mal. Querem ver que a minha vida como assistente de bordo fica por aqui?’”, relembra. Mas haveria de voltar a voar para Luanda, ainda em guerra civil.

De Nova Lisboa, o então comissário de bordo Luís Freitas Branco lembra-se de uma imagem, que mesmo 42 anos depois lhe está gravada na cabeça. “O aeroporto ficou às escuras, estávamos prestes a embarcar, e uma pessoa disse que estava um cão abandonado na placa. Acabou por trazer o cãozinho pequenino a bordo. Foi muito emotivo”, afirma. Daqueles dias de trabalho acredita que foi feito o possível: “Portugal podia ter negociado com os países uma saída mais organizada e com dignidade. A operação foi como apagar um incêndio.”

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O co-piloto Pedro Maya, entre as assistentes, e o seu pai, logo à sua direita na fotografia dr

Os aviões tinham paragens obrigatórias para abastecer de combustível. Acra, capital do Gana, era uma delas. Recorda o então co-piloto Pedro Maya: “Houve um dia em que aterrámos e era feriado [no Gana]. Estava tudo fechado. Tínhamos 300 pessoas no avião, num sítio sem capacidade para alojar ninguém. Andámos a ver na placa quais as companhias que lá estavam e falámos com os seus representantes para ter combustível emprestado.”

Até aos primeiros dias de Novembro, a TAP manteve os voos da ponte aérea para escoar todos os portugueses que por sua livre vontade queriam viajar para Portugal. Pedro Maya levou-os a bordo. Passados poucos dias, os passageiros eram outros: convidados do MPLA que viajavam para a cerimónia da declaração da independência de Angola. Um voo que acabou por não aterrar em Luanda devido à interferência do Governo português, que receava as balas perdidas da guerra civil no aeroporto.

“A nossa operação [da TAP] normalizou, Angola continuou a viver uma situação de guerra. Antes de ser uma guerra contra o colonialismo, foi uma guerra pela luta do poder de Angola independente”, refere Pedro Maya.

Entre Maio de 1974 e Novembro de 1975, 300 mil pessoas abandonaram Angola a bordo dos aparelhos da companhia aérea portuguesa, segundo dados do general António Gonçalves Ribeiro. A ponte aérea garantiu mais de metade deste número a partir do Verão de 75. “Imagine uma pessoa que tem uma memória do arco-da-velha e tem a secretária toda desarrumada e às vezes anda à procura de um documento. Sabe que o documento está ali, mas perde tempo à procura dele. A ponte aérea foi mais ou menos assim: uma desorganização organizada feita fundamentalmente com a boa vontade de toda a gente”, conclui o antigo co-piloto José Morgado.

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