Atirar barro à muralha

No meio de tanta complexidade, será que poderá emergir, como já alguns anunciaram, um Consenso de Pequim?

A propósito do recente congresso da organização partidária do sistema mundial com mais membros, o Partido Comunista Chinês (PCC), Jorge Almeida Fernandes garantiu-nos, no Público, que o pensamento de Confúcio “ocupou o vazio deixado pelo marxismo”, mas na página seguinte deste jornal Carlos Gaspar asseverava que “Xi Xiping não tem dúvidas em defender a identidade marxista do PCC” (Público, 24/10/2017). Não é só a sabedoria convencional ocidental a atirar barro à muralha que é a China. No próprio marxismo ocidental, com muito investimento intelectual e político na análise das dinâmicas das formações sociais, as divergências são igualmente significativas.

Por exemplo, o geógrafo David Harvey, um dos mais influentes historiadores do neoliberalismo, considera que as reformas iniciadas por Deng Xiaoping no final dos anos setenta originaram um “neoliberalismo com características chinesas”, ou seja, um Estado autoritário ao serviço de um processo de acumulação capitalista, inserindo firmemente os trabalhadores chineses nos circuitos globais de exploração. Harvey coloca este dirigente chinês ao lado de Thatcher ou de Reagan, todos de alguma forma politicamente responsáveis pelo desencadear da grande e perversa transformação do nosso tempo numa economia política internacional de onde desaparecia o socialismo.

Pelo contrário, Domenico Losurdo leva a sério o socialismo com características chinesas propagado pelo regime. Sem deixar de assinalar a questões do crescimento significativo das desigualdades sociais, as múltiplas questões ambientais ou o problema da corrupção, Losurdo faz o paralelismo entre Deng e Lenine no momento da Nova Política Económica (NEP) dos anos vinte, ambos reconhecendo o papel instrumental dos mercados no processo de desenvolvimento de uma base material mínima para o socialismo, num quadro que não pode deixar de ter elementos de capitalismo de Estado. Retomando algumas das pistas de economista mista da experiência comunista antes e imediatamente depois da fundação da República Popular, Deng teria sido o iniciador de reformas económicas pragmáticas, em contraste com as prescrições neoliberais do Consenso de Washington. Recusando romper simbolicamente com uma experiência maoista, que de resto não pode ser reduzida aos desastres do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural, Deng beneficiou do seu legado positivo, em termos de uma população relativamente saudável e educada, quando comparada com países como a Índia. Mantendo o controlo político nas mãos do PCC, a China pós-maoista teria também assim evitado a “katastroika” russa do final dos anos oitenta em diante, tornando-se um exemplo de desenvolvimento das forças produtivas, num contexto de satisfação das necessidades básicas da grande massa, de redução da pobreza material sem precedentes históricos e de convergência: a China é de longe a principal responsável pela redução recente das desigualdades internacionais, considerada a prazo o mais consequente freio e contrapeso ao imperialismo ocidental num mundo desta forma a caminho de ser genuinamente multipolar.

Em artigo recente, publicado no convencional Journal of Economic Perspectives, o economista sinólogo Barry Naughton, longe do quadro marxista, coloca ainda assim a pergunta: “É a China socialista?”. Por alguns critérios sim, por outros nem por isso. Naughton não deixa de notar como desde as reformas de Deng se deu um crescimento económico extraordinário, acompanhado por um controlo crescente por parte do Estado chinês dos fluxos de rendimentos gerados na economia pública e sobretudo na privada, parte de uma estratégia desenvolvimentista que não prescinde de instrumentos de planificação, beneficiando do controlo público dos activos estratégicos da economia.

Seja como for, e eu obviamente não sei como é, quando Xi Xiping vai a Davos defender a globalização, é possível assinalar que a China se insere estrategicamente neste processo. Assim, escolhe os fluxos a que se abre e a forma como o faz, de resto como qualquer país em ascensão ao longo da história contemporânea. Basta pensar que a China controla os fluxos de capital financeiro, molda os fluxos de investimento produtivo, no quadro de uma estratégia de convergência tecnológica, que de resto foi até há pouco relaxada em relação a direitos de propriedade intelectual, e maximiza os fluxos comerciais em função de vantagens competitivas que vai construindo, graças à mobilização de todos os instrumentos de política de desenvolvimento, incluindo cambial. Num tempo marcado pela financeirização do capitalismo global e pelas suas crises recorrentes, não deixa de ser sintomático que um dos polos de crescimento do sistema mundial tenha evitado até agora estas crises precisamente porque recusou essa forma de globalização, mantendo no essencial um sistema assente naquilo que os economistas neoliberais designam por repressão financeira.

E quem um dia haveria de dizer que por cá uma parte nada irrelevante dos sectores estratégicos nacionais e das elites nacionais que os gerem teriam de responder perante o Partido Comunista Chinês? Por exemplo, é este que, em última instância, controla a electricidade no nosso país, no contexto de uma estratégia de investimento internacional que não está desligada de considerações políticas. Entretanto, é preciso não esquecer que na China a eletricidade e a sua rede são propriedade pública, bem como a ultramoderna ferrovia sempre em expansão (uma rede de alta velocidade superior à do resto do mundo combinada), mais de três quartos da banca ou, já agora, a totalidade da terra, entregue por muito tempo a quem a trabalha ou a quem nela constrói.

No meio de tanta complexidade, será que poderá emergir, como já alguns anunciaram, um Consenso de Pequim? Se este assentar no respeito pela soberania de Estados apostados num desenvolvimento nos seus termos e participando num sistema internacional capaz de acomodar os interesses de sociedades que querem ser “moderadamente prósperas”, seria caso para dizer que se pode e deve aprender com alguns eixos da experiência chinesa. Para os que, como eu, acham que a democracia e as liberdades políticas são também meios e fins do desenvolvimento, é caso para dizer que esta aprendizagem tem limites. Nem papão, nem modelo, portanto.

O autor escreve segundo as normas do Acordo Ortográfico 

A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais

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