Sou do Norte, sou do Sul. É uma inquietação, mas essa coisa é que é linda

Sei o que é um refogado, um estrugido, o que são atacadores e cordões. Ténis e sapatilhas. Cruzetas e cabides. Sei o que são carapins e botinhas. Sei o que é a canalha, o trabalho que dá a canalhada, na praia fogem-nos para o mar, o barulho que a canalhada faz quando está toda junta na mesa ao Natal. Tenho metade Norte e metade Sul. E cá dentro inquietação, é só inquietação, como canta José Mário Branco.

Metade de um lisboeta, crescido no Bairro Alto, e metade de uma minhota, criada em Guimarães. Já eu nasci no Porto, fui registada por preguiça do meu pai em Guimarães, onde vivi 17 anos, passei férias grandes entre Vila Praia de Âncora, com a minha família nortenha, e uma praia do sotavento algarvio, com os meus primos e tios de Lisboa, lembro-me dos baloiços verdes do quintal dos meus avós vimaranenses e do arrulhar dos pombos na casa minúscula, ao pé do Príncipe Real, dos meus avós lisboetas. Se a casa dos meus avós de Lisboa fosse em Guimarães, seria à beira do Príncipe Real, não ao pé. Lá em cima, ao pé só se for ao pé-coxinho. É uma inquietação, só inquietação, há sempre qualquer coisa que eu devia perceber, como na música.

Há sempre um intervalo que me escapa nisto de ser do Norte e de me sentir em casa em Lisboa. “Porquê, não sei/ Porquê, não sei ainda.” Gosto de passear nas ruas de Lisboa, do sol, é uma cidade iluminada, mas é verdade que também gosto do Porto. E gosto do nevoeiro, em Vila Praia de Âncora adormecia todos os dias com o som da ronca. Num texto publicado na Fugas há uns anos, Siza Vieira também dizia: “Quando deixei de viver na beira-mar, não conseguia dormir com a falta do barulho da ‘ronca’”. A ronca faz uma barulheira desgraçada e é difícil perceber como é possível gostar-se, como eu gostava, de dormir com aquilo. E nem toda a gente sabe o que é uma ronca.

Mas em Vila Praia de Âncora tinha de ser, havia nevoeiro quase todos os dias, todos os dias pareciam um mistério de lendas e ondas, ondas grandes, num mar gelado, e eu mergulhava até ficar com os lábios roxos. Mas também gosto de mergulhar no mar do Algarve, o Algarve tem um cheiro único, à mistura com a cor das flores e as noites quentes, um céu mais perto do deserto. Mas depois também gosto da nortada, dos barcos parados na foz do rio Minho, ali a chegar a Caminha. Tão bonitos nos dias de sol, também há sol no Norte. “É só inquietação, inquietação/ Porquê, não sei/ Mas sei/É que não sei ainda.”

Eu sei lá de que metades sou feita. Gosto dos finos de Guimarães, das imperiais em Lisboa, e ai de mim que troque os termos todos ao terceiro copo. Quando abro a boca em Lisboa, perguntam-me logo se sou do Norte. Só que isso de ser do Norte também tem muito que se lhe diga, porque a pronúncia do Porto não é igual à de Guimarães. E é só um exemplo. Eu fui perdendo muita pelo caminho, mas ainda tropeço em frases que misturem várias palavras seguidas com vês e bês. Vento, Bento, vem, bem, é só inquietação. Cresci a ouvir “resbés Campo de Ourique” e que no quiosque ao lado da escola se vendia tabaco “abulso”. Em pequena, tentei tratar os meus avós de Lisboa por vóvó e vuvu. Mas não me saía bem. Os meus avós sempre foram todos bóbó e bubu. A minha bisavó, a bibó. Os meus primos de Lisboa gozavam com isto, e uma vez eu chorei. Era menina, e o que eu gosto de ainda ser menina no Porto. O meu pai gozava comigo por causa da cenoura. Adiantou pouco. Ainda hoje acho que tem um u, carago. Tudo inquietação.

Nestes momentos dá-me uma febre nortenha e uma vontade de abrir as vogais todas, de escancarar a goela, de dizer que o Alto Minho tem a paisagem mais bonita do mundo, que na adolescência fazia a pé o caminho entre Âncora e Moledo, o mar azul-escuro sempre ao meu lado, às vezes fazia o percurso de comboio, sentada nos degraus da carruagem, as portas iam sempre abertas, não me lembro de pagar bilhete, nunca estava ninguém na estação. E tenho saudades de usar casaco à noite, de pôr um cobertor na cama em Agosto. Mas depois também gosto do Algarve sem vento, do ar parado à noite. E fico vaidosa sempre que me dizem que Guimarães é uma cidade linda, porque é. Tem as praças mais bonitas que já vi. É como os miradouros de Lisboa, nunca vi um rio tão bonito como o Tejo. Mas depois lembro-me dos barcos parados e às cores no rio Minho. E também são os mais bonitos. É tudo, como dizia José Mário Branco, uma inquietação. Há qualquer coisa que eu também não sei resolver nisto de ser entre o Norte e o Sul. Não sei o que é. “Mas sei/ Que essa coisa é que é linda.”

Crónica é uma rubrica do P2, caderno de Domingo do PÚBLICO

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