Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir

Escritora e artista portuguesa a residir em Berlim, é um nome cada vez mais celebrado na arte contemporânea. A partir de hoje temos as suas primeiras exposições individuais em Portugal. Vamos ouvir Grada Kilomba – e isso é olhar de frente para a história colonial, é olhar de frente para nós.

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Na Galeria Municipal da Avenida da Índia, Lisboa, apresentará a primeira individual em Portugal, A Língua Mais Bela/ The Most Beautiful Language, de 26 de Outubro a 4 de Março Ze´ de Paiva

“Vieram ter comigo e disseram: ‘mas como é que aqui em Portugal não se sabe quem tu és?’”

Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir, mas a quem Portugal andou a prestar pouca atenção durante demasiado tempo. Escritora, professora e artista portuguesa a residir em Berlim, é um nome cada vez mais requisitado e celebrado nos circuitos internacionais de arte contemporânea, mas que nos últimos anos contou apenas com uma curta apresentação por cá, em 2015, nos Encontros para Além da História do Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Finalmente, isso está a mudar.

A 30 de Junho trouxe ao Porto a performance Illusions, o pontapé de saída de Incerteza Viva: Uma exposição a partir da 32.ª Bienal de São Paulo, no Museu de Serralves. Este Outubro, em Lisboa, têmo-la em dose quádrupla. Primeiro na Galeria Municipal da Avenida da Índia, com a primeira individual em Portugal, A Língua Mais Bela/ The Most Beautiful Language (de 26 de Outubro a 4 de Março). Também a 26 de Outubro inaugura Secrets To Tell no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Segue-se uma conversa no Maria Matos sobre o seu trabalho, a 28 de Outubro, com Carla Fernandes, jornalista e mentora do audioblogue AfroLis (quem não conseguir estar presente terá sempre o live streaming). Uma outra conversa com a artista acontecerá na Hangar, a 3 de Novembro.

“É esquizofrénico mostrar o meu trabalho regularmente em tantos sítios, do Brasil à África do Sul, passando por várias cidades da Europa, e ter sido tão difícil fazê-lo em Portugal”, diz ao Ípsilon. Na verdade, mais do esquizofrénico, é perversamente coerente: entrar no trabalho de Grada Kilomba – nas suas instalações de vídeo e som, nas suas performances, nas suas leituras encenadas, nos seus textos – é ter de lidar com a história violenta do colonialismo e pós-colonialismo, história na qual Portugal está profundamente entranhado mas que teima em fingir que não é nada com ele.

“Ainda estamos em negação”, resume a artista. Desde o sistema educativo, em que se continua a perpetuar o mito do “bom colonizador”, essencial para alimentar uma certa biografia nacional, à crença romantizada de que Portugal não é um país racista. “Nós falamos dos mares, dos ‘descobrimentos’, das naus com um romantismo tal, como se a história colonial e da escravatura, que aqui é completamente banalizada, fosse um encontro intercultural e não uma história de tortura, genocídio, desumanização, exploração patriarcal”, aponta. Uma banalização que chega a vários sítios, inclusive à restauração: recentemente abriu em Lisboa um bar-restaurante chamado Café Colonial, cujo conceito é “a celebração das raízes lusófonas” (as críticas não demoraram a multiplicar-se).

“A negação está sempre ligada a uma glorificação do passado”, afirma. “Podemos falar no medo de perder poder e privilégio branco, com certeza, mas acho que tem a ver também com não arriscar chegar ao presente”, assinala. “Há uma certa estupidez logística em Portugal no sentido em que há outros países que conseguiram perceber que têm essa história colonial e racista brutal e que ela tem de ser abordada. Que é importante, como diz bell hooks, interromper, ocupar e transformar a história e os espaços com novos discursos, novos sujeitos, novas configurações de poder.”

Apesar de tudo, isso “está a começar a acontecer” em Portugal, sublinha Grada Kilomba. Os convites em catadupa que recebeu são, acredita, um sinal disso mesmo – e é significativo o facto de terem vindo de “instituições grandes”. “Acho que também tem a ver com uma nova geração de curadores que agora estão em posições de poder. Como o João Mourão [ex-director das Galerias Municipais, que iniciou toda esta vinda de Grada a Lisboa], Pedro Gadanho, Paula Nascimento, João Ribas, Pedro Faro ou a Inês Grosso.”

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Esra Rotthoff

Descolonizar o conhecimento

Numa altura em que têm surgido em Portugal várias plataformas dedicadas ao combate ao racismo, à divulgação das culturas africanas e ao feminismo negro – como a Djass, a Femafro, a Consciência Negra ou a AfroLis –, entre documentos de investigação relevantes como o livro Racismo em Português – O Lado Esquecido do Colonialismo da jornalista do PÚBLICO Joana Gorjão Henriques, Grada Kilomba encontra agora um contexto diferente daquele em que começou a trabalhar. “Os estudos pós-coloniais em diálogo com o conhecimento performativo interessavam-me, mas não havia plataformas cá.” Depois de tirar o curso de psicologia clínica e psicanálise no ISPA, em Lisboa, e de ter trabalhado no Hospital Júlio de Matos com um psicanalista e sobreviventes de guerra, Grada foi para Berlim fazer o doutoramento, à boleia de uma bolsa da Fundação Heinrich Böll.

A partir da capital alemã, o seu trabalho ganhou ritmo, espaço, visibilidade. E tentáculos internacionais. “Comecei a publicar, a trabalhar noutras cidades, a dar aulas em universidades no Gana, na Áustria, em Londres. Sempre com projectos muito experimentais, em que cruzo os estudos pós-coloniais, estudos de género, performance, literatura”, explica a artista, que trabalha regularmente com o teatro berlinense Maxim Gorki e é representada pela Goodman Gallery, na Cidade do Cabo. Influenciada por pensadores e escritores negros como Frantz Fanon e bell hooks, Grada começou desde cedo a cimentar um dos pilares identitários da sua obra: a fusão entre a linguagem artística e a académica.

“Acho muito fascinante trabalhar dentro das artes com conhecimento e sublinhar que se está a produzir conhecimento.” Nesse processo, reclama a autoria, a autoridade e a validade da sua própria história – o que é, por si só, um acto político, um acto de descolonização numa estrutura académica e artística cujas hierarquias de poder ainda são brancas e patriarcais. “Sou o sujeito, não o objecto. Trabalho para mim, para perceber quem sou, para completar um puzzle que foi fragmentado. Essa é a diferença de um trabalho feminista e descolonial para um trabalho clássico.”

“Quem pode falar? Quem pode produzir conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal?” são as veias que percorrem todos os seus projectos. Projectos híbridos que fintam a catalogação. “Não estou interessada em trabalhar numa só disciplina; estou interessada em contar histórias. Depois cada uma dessas histórias precisa de formatos diferentes”, nota Grada. “É uma forma de subverter as práticas artísticas que têm sido representadas pelo homem branco, pelo sujeito dominante. É descolonizar o conhecimento, é trazer a questão da raça, do género, da sexualidade como partes inseparáveis de um discurso. Eu não sou apenas uma mulher, sou uma mulher negra. Para mim é importante pensar nessa complexidade e trazê-la para a minha arte.”

Essa intersecção de linguagens e métodos vai ser clara na exposição A Língua Mais Bela, na Galeria Avenida da Índia, com curadoria de Gabi Ngcobo e produção criativa de Moses Leo. Cada peça terá “um formato diferente”, mas sempre com a palavra no centro, outra das marcas distintivas do trabalho de Grada Kilomba. Em Illusions – instalação reconfigurada a partir da performance homónima apresentada na última Bienal de São Paulo, na documenta 14, em Kassel, e em Serralves –, Grada transporta para um contexto pós-colonial e encena os mitos de Narciso e Eco, posicionando-se como uma contadora de histórias, uma griot contemporânea. “Quis recuperar a tradição africana de produção oral de conhecimento no papel de uma mulher griot.”

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Printed Room será uma blackbox revestida por páginas de um dos livros escritos pela artista, Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (2008). Mais exactamente páginas enviadas por leitores de vários países, da Bolívia à Suécia, com apontamentos e notas. O público será acompanhado pelo áudio de actores a lerem o livro (livro que “a maior editora de Portugal” não teve interesse em traduzir para português, conta a autora, ficando entregue ao Brasil). Sem revelar demasiado, haverá ainda a instalação The Dictionary, em que a artista apresenta o processo de consciencialização e desconstrução do racismo não como etapa moral, mas psicológica. São cinco passos, explicados a fundo em Plantation Memories: “negação, culpa, vergonha, reconhecimento, reparação.” De resto, o título da exposição deixa entrever um jogo irónico: “Dizemos que temos a língua mais bela, mas não pensamos em todas as exclusões e opressões coloniais e patriarcais dentro da sua terminologia”, diz Grada (por exemplo, por que não usar o termo “expansão marítima violenta” em vez de “descobrimentos”?)

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A palavra volta a ser assunto na exposição Secrets To Tell no MAAT, que dá início à programação da sala Project Room. É curada por Inês Grosso e pensada a partir da vídeoinstalação The Desire Project, concebida para a Bienal de São Paulo e entretanto adquirida pela Fundação EDP. “É uma instalação com três canais de vídeo simultâneos em três actos: enquanto eu caminho, enquanto eu falo, enquanto eu escrevo. Recupero a figura da Escrava Anastácia para falar das narrativas que foram silenciadas”, explica a autora. “Depois passa-se para um espaço digital e futurista, com um batuque composto pelo Moses Leo. Trabalho com a sonorização e a visualização da escrita.”

Para Grada Kilomba é “fundamental tornar o conhecimento vivo, corpóreo, físico”. “Através das artes consegues formular, sem impor, uma plataforma em que o público levanta questões que não estavam lá antes. Aí começa-se a descolonizar o conhecimento. Para mim, arte é isso: quando ela consegue entrar dentro de ti emocionalmente e fisicamente, e transformar-te.”

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