Não há amor como o das mães que são duas

As Boas Maneiras, da dupla brasileira Juliana Rojas e Marco Dutra, é o primeiro grande filme do concurso principal de Locarno: um conto de fadas entre Disney e Polanski que fala do Brasil moderno e do amor de mãe.

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Era uma vez uma babá contratada para tomar conta do bebé de uma mãe solteira que, vai-se a ver, mais do que de uma babá precisa de uma governanta/cozinheira/confidente/amiga. Ter um exorcista à mão de semear talvez não fosse má ideia, porque sempre que a lua está cheia Ana porta-se de maneira um pouco invulgar, com episódios de sonambulismo. Mas por muito que Clara, a babá-faz-tudo, desconfie de que qualquer coisa não bate certo, nada faria esperar o que realmente acontece quando o bebé finalmente nasce.

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Era uma vez uma babá contratada para tomar conta do bebé de uma mãe solteira que, vai-se a ver, mais do que de uma babá precisa de uma governanta/cozinheira/confidente/amiga. Ter um exorcista à mão de semear talvez não fosse má ideia, porque sempre que a lua está cheia Ana porta-se de maneira um pouco invulgar, com episódios de sonambulismo. Mas por muito que Clara, a babá-faz-tudo, desconfie de que qualquer coisa não bate certo, nada faria esperar o que realmente acontece quando o bebé finalmente nasce.

Não daremos grandes pormenores sobre o que a dupla brasileira formada por Juliana Rojas e Marco Dutra inventou para a sua segunda longa em conjunto, As Boas Maneiras (Concurso Internacional). Mas diremos que o filme, de longe a melhor entrada vista até agora na competição nobre do Festival de Locarno, é um assombroso exercício de “confusão dos géneros”. Um conto de fadas negro de noite e vermelho de sangue que remete simultaneamente para a Semente do Diabo de Polanski e para Walt Disney, para o Babadook de Jennifer Kent e para os gialli de Dario Argento, mas ao mesmo tempo tão brasileiro como Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro ou Glauber Rocha. Não é o único filme de género em Locarno este ano – já vamos falar de um outro, curiosamente assinado também por uma dupla de realizadores –, mas é aquele que o faz de modo mais surpreendente, ousado e conseguido, envolvendo uma meditação séria sobre a natureza do amor maternal numa sociedade rigidamente delineada, e tudo numa estrutura em dois actos que não hesita em saltar as fronteiras que o filme de género habitualmente não desafia.

Nesse aspecto, As Boas Maneiras é digno gémeo do Era uma Vez Brasília, de Adirley Queirós, no modo como parte do Brasil de hoje para construir uma utopia contaminada de um outro Brasil, ao mesmo tempo que faz ponte com Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, para falar da relação equívoca entre patrão e empregado, branco e negro. Clara, a babá que a portuguesa Isabel Zuáa habita com uma humanidade dilacerante, é negra e é sempre vista de lado pelos brancos; Ana, a filha de fazendeiro que a contrata, interpretada por Marjorie Estiano, é uma branca rica que não se quer preocupar com as coisas “banais” do quotidiano. Ambas são de certo modo “párias” nos seus próprios meios sociais, e o bebé por nascer de Ana acabará por ligá-las de um modo que atravessa linhas de demarcação de cor da pele e classe social. Não é inteiramente casual que o momento em que tudo bascula tenha lugar num shopping de São Paulo, um castelo de vidro e metal tomado de empréstimo à Disneylândia que torna visível a dimensão de conto de fadas de As Boas Maneiras.

O bebé, Joel de seu nome, é ao mesmo tempo o possibilitador dessa utopia de um Brasil sem divisões e a melhor prova de que ela não passa disso mesmo, de uma utopia – e o modo como se processa a passagem de testemunho, que é também uma passagem do tempo no interior da narrativa, exige do espectador que se deixe levar pelo filme como se estivesse a ver uma fábula que se abre à criança dentro de nós ao mesmo tempo que pede para protegê-la do mundo (e terá, aí, de se falar do notável trabalho de fotografia do português Rui Poças, espantoso de atenção ao clima emocional exigido em cada momento e em cada mudança de tom). As Boas Maneiras já está a dividir a crítica em Locarno, mas isso é por si só sinal de um filme que não está onde o esperávamos.

Questões de género

Falávamos atrás de género e se teremos de aí voltar por causa de F. J. Ossang (cujo 9 Doigts terá honras de estreia a concurso mais logo) é inevitável para já ir buscar a dupla francesa formada por Hélène Cattet e Bruno Forzani, que com a sua terceira longa, Laissez bronzer les cadavres (Piazza Grande), propõe uma espécie de giallo-spaghetti inspirado assumidamente pelos westerns de Sergio Leone ou Sergio Corbucci. Adaptado de um romance de culto escrito nos anos 1970 por Jean-Patrick Manchette e Jean-Pierre Bastid, é essencialmente um polar sanguinolento e solar ambientado à beira-mar, sobre um golpe que corre mal e que acaba com polícias, ladrões e inocentes entrincheirados num castelo em ruínas que serve de residência a um romancista em crise e uma artista excêntrica.

A trama, contudo, é um mero pretexto para Cattet e Forzani exibirem uma virtuosa demonstração de estilo e formalismo, planificado ao milímetro, onde a narrativa é secundária e o essencial é o preciosismo ostensivo de uma mise en scène de uma precisão maníaca, onde tudo está no sítio certo no momento certo, com um trabalho de câmara e montagem completamente fetichista do cinema popular italiano da década de 1970. Laissez bronzer les cadavres é tão sufocantemente controlado que é legítimo perguntar onde fica a fronteira entre o kitsch meta-referencial e o genuíno amor ao estilo – e onde Juliana Rojas e Marco Dutra usam o género para fazer avançar o seu próprio modo de pensar o cinema, Hélène Cattet e Bruno Forzani ficam-se pela superfície e pelo estilo cinéfilo como essência. Mas bolas, que é um estilo de primeira água, e um filme que qualquer apreciador da série B vai curtir que nem um castor.