Na noite em que o Super Rock foi super hip-hop brilhou Slow J

Depois de uma noite de abertura em que todos os caminhos foram dar aos Red Hot Chili Peppers, foi a cultura hip-hop, com todos os seus afluentes, a evidenciar-se no Super Bock Super Rock.

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Há um ano, o rapper Kendrick Lamar havia sido apoteótico no Super Bock Super Rock, num concerto que muitos ainda terão fresco na memória. Não houve nada parecido esta sexta-feira no mesmo local, até porque o americano parece estar hoje numa liga à parte, mas foi a cultura hip-hop, com todos os seus afluentes, que esteve em evidência, depois de no primeiro dia todos os caminhos terem ido dar aos Red Hot Chili Peppers.

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Há um ano, o rapper Kendrick Lamar havia sido apoteótico no Super Bock Super Rock, num concerto que muitos ainda terão fresco na memória. Não houve nada parecido esta sexta-feira no mesmo local, até porque o americano parece estar hoje numa liga à parte, mas foi a cultura hip-hop, com todos os seus afluentes, que esteve em evidência, depois de no primeiro dia todos os caminhos terem ido dar aos Red Hot Chili Peppers.

Logo na abertura do dia esteve o americano Pusha T, actuando a uma hora mais destinada aos nomes menos conhecidos. A opção de o pôr às 17h parece ter-se devido ao facto de nessa noite ter outro espectáculo na Bélgica. E essa ocorrência marcou a sua prestação: o rapper norte-americano, cúmplice de Pharrell Williams, Kanye West ou Jay-Z, cumpriu apenas os serviços mínimos, com uma actuação de cerca de 40 minutos que ainda assim conseguiu arrancar algum entusiasmo aos mais indefectíveis. Mais generoso foi Keso, um rapper portuense que actuou do outro lado do recinto, com as batidas densas do hip-hop a sublinharem letras poéticas e uma forma provocadora mas bem-disposta de interagir com o público.

Mas se houve um nome que se destacou no segundo dia do festival foi o de Slow J, ou seja João Batista Coelho, que lançou este ano o álbum de estreia The Art of Slowing Down. Do início ao fim teve o público com ele e fez por merecê-lo, mostrando uma confiança em palco que não se confunde com soberba. Não existe nele uma vontade afirmativa premente. Claro que pede a participação popular, mas fá-lo com o desprendimento de quem sabe que, antes de pedir a toda a hora para o público pôr as mãos no ar, tem de mostrar os seus dotes vocais (e ele tem-nos, quando declama ou canta, quando a palavra é cortante ou moldada) e um som rico e denso, que parte do hip-hop para a soul, o funk, as electrónicas, os africanismos ou o rock.

Às tantas, no meio da actuação, quase como se pedisse desculpa, disse ao público para não se preocupar, caso estivesse a interrogar-se se estava a ouvir hip-hop ou rock. Numa época de tantas transmutações, as proclamações de “pureza” ou “autenticidade”, que ainda são recorrentes na cultura hip-hop, não fazem grande sentido e no seu caso isso ainda é mais nítido. Não tem de se preocupar. Nele tudo acaba por soar genuíno, fluindo de forma natural: palavras, música e ritmo. E aí, é necessário dizê-lo, Slow J tem em Fred Ferreira (bateria) e Francis Dale (teclados e guitarra) dois aliados de peso. Constituem verdadeiramente um trio.

É evidente que tudo passa por ele, pela forma como consegue interagir com a multidão (ainda mais evidente em temas que toda a gente canta em coro como Não me mintas ou Menina estás à janela), mas vislumbra-se uma verdadeira cumplicidade entre os três, capazes de passar da energia à flor da pele de Arte para a ginga rítmica de Mun’ dança, ou de expor um registo mais introspectivo em Serenata e Sonhei para dentro. Lá para o final, coadjuvado pelos rappers Gson e Papillon, Slow J fez a festa com Pagar as contas, descendo até ao público para um merecido banho de afecto. Foi dele o melhor momento musical do dia.

Quem não teve vida fácil foram os The Gift e os London Grammar, dois corpos estranhos num dia em que o hip-hop era rei. Os portugueses foram os primeiros a confrontar-se com uma Meo Arena meio despida de público, apostando nas canções do mais recente álbum, Altar. Uma opção generosa, já que na sua maioria são canções mais planantes e descarnadas do que lhes conhecíamos até agora. O efeito final, com o som dos instrumentos bem definido a cada um dos cantos da sala, acaba por resultar bem em Lost and found, Malifest, The singles ou Love without violins. Mas o público nunca saiu de uma certa letargia.

A recepção aos London Grammar, desse ponto de vista, acabou por ser mais calorosa, com o trio inglês a fazer render o facto de estar pela primeira vez em Portugal. A excelente voz de Hannah Reid acaba por ser o centro das atenções, com o cenário a ser como a música: simples e desnudado. Por vezes isso gera momentos de enlevo emocional, como na interpretação puramente vocal de Rooting for you, ou na pop electrónica em câmara lenta de Strong, ou em Hey now, talvez o tema mais conhecido do álbum de estreia, que teve ressonância junto da assistência. É verdade que também houve momentos decorativos, mas no final ficou a ideia de que o grupo não estava à espera de uma recepção tão boa, e que o público não estava com expectativa para tanto. O que não é nada mau.

Antes de o rapper americano Future entrar em palco, muita gente ainda foi a correr até à outra ponta do recinto, para assistir a um pouco do espectáculo dos Língua Franca, o colectivo luso-brasileiro de Capicua, Valete, Rael e Emicida. Do que vimos, sempre que Valete entrou em acção fez a diferença, principalmente quando cantou Rap consciente, o seu mais recente tema. Incisivo, sagaz e instigador, foi críptico com o posicionamento de algumas das figuras do rap das novas gerações, declamando: “Nós só queríamos saber de rimas e inovações/ Agora só preocupados com visualizações/ Tu viralizas, enquanto vigarizas.”

Claro que não estava a falar de Future, a superestrela americana que era a grande atracção da noite junto do público mais juvenil, mas até podia ser, porque este pertence a uma geração para a qual tudo se joga nas avenidas da Internet, nos signos visuais e nos códigos de identidade em que os números e o ter tantas vezes se confundem com o ser. Não é por acaso que o palco, no início, se divide em vários ecrãs de telemóvel. A rodear Future estão por vezes três bailarinos, mas em muitas alturas o palco é todo dele. Uma voz invisível interage com o público, mas o que domina a sala é o imenso rumor do som dos graves e as vozes, dele e da multidão, muitas vezes em uníssono, parecendo por vezes quase indistintas.

Os lentos batimentos cardíacos vão-se impondo, as imagens sobrepõem-se, e a voz de Future, alterada electronicamente, vai fazendo com que a magia aconteça entre as gentes, que se bamboleiam como se estivessem numa coreografia ensaiada, pelo menos nas zonas mais perto do palco. Não existe grande interactividade, para além dos habituais pedidos de “façam barulho!”, mas a comunicação acontece, com temas como o excelente Draco ou a balada Comin’ out strong a serem lançados sem interrupções. Para o final fica o sucesso Mask off, com uma magnífica batida narcótica a anteceder uma explosão de confetti e aplausos, num espectáculo que parece ter agradado aos admiradores de Future e deixado confuso quem não conhece a sua música e os códigos para a apreender. Claro que não fez esquecer o Kendrick Lamar do ano passado ou o Slow J de umas horas antes, e que não é ele o Future da música popular, mas é um dos presentes possíveis e, nesse sentido, cumpriu.

Este sábado o rock volta ao festival com Deftones ou Foster The People, mas também haverá Fatboy Slim, Seu Jorge, Bruno Pernadas, Taxiwars ou James Vincent Mcmorrow.