A luta do Língua Franca é internacional: destruir barreiras, aproximar pessoas

Capicua, Emicida, Valete e Rael estrearam o projecto colectivo luso-brasileiro no Super Bock Super Rock. Querem que sirva para derrubar fronteiras. Todas elas.

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Miguel Manso
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Quando se chega ao Rossio dos Olivais, em Lisboa, é quase impossível não notar as dezenas de bandeiras hasteadas em duas fileiras de mastros altos, logo à entrada do local. Pensar no que diferencia cada um daqueles países é provavelmente a primeira reacção de quem se põe a olhar aquele corredor estreito de fronteiras, mas é exactamente em oposição a essa ordem que nasceu o Língua Franca, projecto que reúne os rappers Capicua, Emicida, Rael e Valete, e que teve sua estreia mundial esta sexta-feira no Super Bock Super Rock, que acontece até 15 de Julho, justamente no Parque das Nações.

O álbum foi quase que inteiramente composto e gravado em 2015, quando os brasileiros Emicida e Rael viajaram para a capital portuguesa e partilharam com Valete e Capicua uma espécie de residência artística, que resultou nos dez temas que integram o disco. A iniciativa transatlântica também contou com a presença dos produtores Fred Ferreira, Kassin e Nave, e o resultado chama a atenção tanto pela sonoridade como pelas rimas que misturam palavras e referências do Brasil e de Portugal, mas são percebidas por todos.

Do lado de cá, quem ouve falar de "banheiro do Mackenzie" vai entender tanto quanto alguém que, do lado de lá, escuta a expressão "fado da Carminho", mas mesmo assim as mensagens fazem-se compreender, porque, quando atentamos às grandes questões, o próprio conceito de "lá" e "cá" deixa de fazer sentido. Afinal, qual é a diferença entre um refugiado a nadar contra o Mediterrâneo e uma criança "se afogando" na desigualdade social brasileira, senão um gerúndio? E o que é um gerúndio perto das responsabilidades que, como seres humanos, temos todos em comum?

"A timeline do mundo ‘tá uma história tão bagunçada, tão triste, que você pega, por exemplo, uma música como (A)tensão!: a Capicua está olhando de Portugal e eu estou falando do Brasil, mas se a gente coloca isso em Paris faz sentido, se a gente coloca isso em Londres, em 2017, faz sentido, então acho que existe uma atmosfera comum que acaba conectando tudo", diz Emicida que, ao lado de Capicua, conversou brevemente com o PÚBLICO, alguns minutos antes do concerto no festival.

Nesse sentido, Língua Franca, apesar de se afirmar como um projecto lusófono, vai além e demonstra que, em essência, é uma iniciativa que quer reduzir distâncias e superar fronteiras, sejam elas quais forem. Para isso, agarra-se a temáticas universais, como a amizade, o amor, a morte e o ego, e mostra que o que separa as pessoas nem sempre é uma questão de geografia.

"Como é um disco de colaboração, em que tens quatro pessoas muito diferentes, com visões de mundo, vivências e histórias de vida diferentes, é preciso permanentemente encontrar um ponto em comum, traçar ali uma mediana que cruza todas as nossas vidas, opiniões e formas de estar", revela Capicua.

Se a língua franca é a língua que falamos quando encontramos esse território em comum, aqui fica evidente que é impossível encontrar esse espaço sem enfrentar questões como a igualdade de género, o racismo e a desigualdade social, todas presentes no disco e na carreira solo dos quatro artistas que carregam como marca a responsabilidade de olhar para o rap como ferramenta capaz promover mudanças no mundo.

Nas palavras de Emicida, propor uma reflexão sobre esses temas é uma forma de estimular as pessoas a pensarem sobre questões mais profundas que eventualmente farão com que elas se liguem entre si. "Acho que a grande conquista é sempre essa: lutar para destruir as barreiras que distanciam as pessoas e aproximá-las do que elas têm de semelhante. O Língua Franca, na minha visão, é isso".

O poder da música nessa jornada é indiscutível. Para Capicua, isso acontece porque a música está permanentemente a entrar no metro quadrado das pessoas, sem que elas percebam. "Nós arrepiamo-nos e nem sequer sabemos bem por que isso acontece, e isso acrescenta um poder muito forte às palavras", afirma e brinca: "Acho que isso é um bocadinho levado ao extremo quando falamos do rap, porque nós usamos muitas palavras".

Munido de toda essa força da música e das palavras, o grupo subiu ao palco EDP do Super Bock Super Rock,  pontualmente às 22h45. A plateia ganhou volume aos poucos e, em alguns minutos, uma pequena multidão já agitava os braços no ar, a acompanhar o ritmo das batidas. O concerto alternou temas do disco recém-lançado com músicas das carreiras a solo de cada um dos rappers. O público acolheu-os e recebeu particularmente bem Valete, que deixou a sua marca em todos os momentos em que entrou.

Antes de cantar Medusa, parceria com Capicua em que ambos falam sobre a violência contra a mulher, o rapper português fez questão de sublinhar: "É possível que eu seja pai de uma menina este ano, e quero olhar para ela e dizer: amo-te porque és determinada, amo-te porque és inteligente, amo-te porque és corajosa". A plateia veio abaixo.

No final, muitas pessoas já haviam deixado o local, provavelmente para se dirigirem ao palco principal, onde poucos minutos depois se apresentaria o rapper americano Future. Mesmo assim, Emicida não deixou de dar o recado: "Quantas vezes a gente não agradeceu aos amigos pelos momentos vividos? Dá um abraço no seu amigo agora. Esse momento é único." Imediatamente público se abraçou. Ali, pelo menos, não havia mais distâncias a serem superadas e, ao invés de um corredor estreito de fronteiras, era possível enxergar um horizonte muito mais amplo.

Texto editado por Hugo Torres

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