Sobre Nadir.

Para além de pintor, e arquitecto, Nadir foi sempre um pensador — algo que sempre me fascinou, e que o distinguia dos demais. Procurava compreender o porquê do que fazia, e o porquê de o fazer da forma como fazia

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FG + SG

À margem do Tâmega plantado, um corpo branco estende-se à beira-rio, na cidade (outrora) romana de Chaves. Ao longe, um volume de um único piso, em betão branco aparente, repousa subtilmente sobre um conjunto de lâminas que o erguem do chão, refugiando-se das águas que, de quando em vez, ousam inundar a zona ribeirinha.

Somos encaminhados por uma ligeira rampa em granito, à cota alta. O percurso – que estabelece a transição entre o centro histórico e as margens do rio, enaltecendo-o – faz-se (quase) sempre de olhos postos neste corpo simples, mas de enorme plasticidade. O silêncio da paisagem envolvente, e dos campos verdes, marca-nos a cadência dos passos.

(Silenciosa era também a casa de Nadir, em Cascais. Como naquelas tardes passadas no sofá, junto ao pátio interior, em redor de uma mesa, a falar de arquitectura, de pintura, de arte – de tudo. Sempre certeiro, Nadir chegava e com uma frase (ou um olhar apenas), era capaz de mudar a temperatura da sala – sobretudo, de (me) fazer pensar.)

O génio de Siza Vieira (escolhido pelo próprio Nadir Afonso) deu forma a este elegante volume que se desenvolve ao longo do rio e que, aqui e ali, evoca subliminarmente o imaginário artístico e pictórico de Nadir. Conferindo-lhe uma leveza particular, as lâminas que sobre-elevam o edifício – perpendiculares ao rio, mas de orientação desencontrada – são rasgadas por uma série de aberturas que, criando interessantes enquadramentos visuais, nos remetem para as formas primárias que tanto informaram a obra geométrico-abstraccionista de Nadir Afonso: quadrados, triângulos, arcos de volta perfeita.

(Com o seu espírito mordaz e o seu sentido de humor desconcertante, Nadir questionava-me sobre a razão de eu estudar a sua obra de arquitectura, quando afinal, “tinha sido sempre um pintor.” Nadir Afonso sabia a resposta, tão presente no seu riquíssimo percurso profissional com mestres como Corbusier e Niemeyer, como nos seus modernos projectos edificados, principalmente em Chaves, a sua terra natal. Apenas fazia questão de marcar, sempre (e uma vez mais), a sua incondicional paixão pela pintura. Nadir Afonso era um pintor apaixonado, e obsessivo. Vivia para pintar, pintava para se sentir vivo.)

No interior do Museu, a simplicidade e unidade material mantêm-se. O granito do chão exterior transforma-se em soalho de madeira. Através de um fino rodapé em mármore branco, a madeira faz-se parede e tectos brancos, iluminados pontual e controladamente por grandes janelas horizontais que enquadram pedaços do exterior (uma chega a ter mais de 40 metros contínuos, abertos ao verde de algumas árvores de fruto, e aos azuis do céu e do rio).

O despojamento do desenho de Siza convoca-nos para um diálogo íntimo com a obra de Nadir, ali exposta na grande exposição que, no ano passado, inaugurou o Museu:

Nadir Afonso – Chaves para uma Obra

, comissariada pelo Prof. Bernardo Pinto de Almeida. No próximo dia 30 de Junho, o museu inaugura a sua segunda grande exposição:

 Arquitectura sobre Tela

Architecture on Canvas, comissariada pelo Arq.º António Choupina, dedicada ao percurso internacional de Nadir Afonso.

(Não raras vezes, Nadir dizia que “a harmonia não se concilia com razões de outra ordem, funcionais ou outras; quando se compromete... sujeita-se!” Por isso mesmo, e partindo sempre da proporção e da harmonia como os sustentáculos fundamentais da beleza, e da arte, para Nadir a arquitectura nunca se podia configurar como uma arte, pois tem como primeiro objectivo responder a uma função, suprir uma necessidade.)

 

Percorremos os grandes espaços do museu, e facilmente percebemos que o controlo da luz interior foi alvo de um processo de estudo aturado e detalhado, algo a que Siza já nos habituou em tantos outros projectos seus, como em Serralves e em Marco de Canaveses, entre outros. O resultado é sublime. De facto, um dos espaços mais interessantes é uma das principais salas expositivas, iluminada indirectamente por uma luz zenital branca e translúcida que, depois de atravessar dois vãos em tijolo de vidro junto à cobertura, mergulha suavemente por um longo lanternim longitudinal contínuo.

 

(Para além de pintor, e arquitecto, Nadir foi sempre um pensador – algo que sempre me fascinou, e que o distinguia dos demais. Procurava compreender o porquê do que fazia, e o porquê de o fazer da forma como fazia. No fundo, pintava para compreender a razão porque pintava. E defendia, vigorosamente, que toda a arte era regida por leis matemáticas que estão presentes na natureza, e que todo o artista emprega intuitivamente na sua obra. Isso – essa ânsia de liberdade de expressão, não só em termos artísticos como também filosóficos – trouxe-lhe inúmeros problemas, mas também fez com que se tornasse autor de uma das obras mais importantes do modernismo português.)

Siza Vieira sonhou ser escultor antes de ser arquitecto; Nadir Afonso sonhou ser pintor antes de se ter tornado arquitecto. A associação destes dois nomes maiores do panorama artístico e arquitectónico contemporâneo português resultou aqui em pleno, num conjunto singular que afirma toda a sua transcendência e modernidade. A clareza do desenho proposto por Siza aproximou de forma sublime este Museu a Nadir Afonso e à complexidade do seu trabalho e pensamento artísticos, celebrando assim, da melhor forma, a sua obra e filosofia, tão singulares quanto pioneiros.

(Nadir já não pôde ver a sua Fundação, o seu Museu. Tanto na pintura, como na arquitectura, foi um autor marcadamente moderno, insatisfeito com o seu tempo – e com o seu cunho (sempre) muito pessoal. Durante toda a sua existência, nunca cuidou do seu sucesso, promoção ou reconhecimento, nunca cuidou de ter “uma carreira”. Homem de vida pública modesta, viveu de forma recatada, totalmente dedicado à sua incessante paixão pela pintura, e à criação da sua extensa obra plástica e teórica.)

No meio do jardim exterior, uma pequena estrutura, insondável, qual escultura de David Umemoto. Siza deixou-a – serviu para os testes de afinação do betão branco aparente, durante a obra. Caminhamos junto ao rio, pelas traseiras, pelo entorno do Museu. Do tempo restou um extenso muro de ruínas, propositadamente mantido e consolidado. Os velhos muros de pedra assinalam o sentido do tempo, e preservam silenciosamente a memória daquele lugar, a que chamam “Longras”.

“O tempo não existe”, escreveu Nadir Afonso (“O Tempo não Existe: Manifesto”, 2010).

Não sabemos.

Mas a sua obra, essa sim, não teve, não tem, nem terá tempo.

Ficará sempre intemporal.

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