Francisco Luís Parreira: “Ainda hoje não sei que canção cantaram as sereias a Ulisses”

Escrita há milénios nas margens daquele grande rio Eufrates, a demanda do lendário Gilgameš é a mais alta poesia mesopotâmica. Desaguou, finalmente, em tradução erudita e legível, na língua portuguesa.

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O sítio arqueológico de Uruk, no sul do Iraque, guardado por uma tribo de beduínos Marc DEVILLE/Gamma-Rapho via Getty Images

Poeta e professor, guionista e realizador, autor e encenador de teatro, licenciado em Filosofia e doutorado em Ciências da Comunicação, o tradutor da primeira versão portuguesa fiável do Épico de Gilgameš continua “à espera de surpreender os passos perdidos dessa seriedade abismal sem a qual a literatura não poderia ter vindo à existência”.

Como e quando surgiu a ideia de traduzir Gilgameš? Quanto tempo demorou a tradução?
A oportunidade – não o desejo, que era anterior – surgiu com o desafio lançado por uma companhia teatral, em busca de um texto cénico inspirado no poema babilónico. Aceitei o desafio com a cláusula de que o meu compromisso com esse poema só podia ser o que agora se exprime na edição: uma tradução integral, com suplementação de fontes, de um texto que tem de ser assumido como fragmentário e lacunoso. O entusiasmo e o escrúpulo com que a ideia foi acolhida servem também de testemunho da rara integridade que caracterizou o espectáculo. A tradução usada em palco foi completada em pouco mais de um ano.

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O desafio para traduzir Gilgameš foi lançado a Francisco Luís Parreira por uma companhia teatral, em busca de um texto cénico inspirado no poema babilónico

O texto agora publicado reproduz aquele utilizado no espectáculo Da Imortalidade? Ou a experiência cénica influenciou o texto agora fixado?
O trabalho com a equipa artística do espectáculo, em regime de workshop, com participação de outros profissionais e estudantes de teatro, foi sobretudo benéfico para a afinação de soluções de tradução mais angulosas e, em geral, para o controlo do texto enquanto peça oral. Esse tipo de trabalho concorda em absoluto com a natureza do texto. Os escribas mesopotâmicos não inscreviam os textos no barro sem os saberem de cor, tal como um actor. Ao inscreverem depois os textos, comprometiam-se com uma dimensão performativa equivalente à que encontramos no trabalho do actor. Naturalmente, as composições literárias a inscrever premeditavam já valores rítmicos ou prosódicos destinados a favorecer a sua memorização. A escrita, por outro lado, destinava-se à voz física, não à voz interior. Tratei por conseguinte de usar os actores como escribas aprendizes – estou certo de que me perdoarão a revelação tardia – para testar a sobrevivência dessas qualidades no texto português. O texto editado corresponde grosso modo ao texto cénico, menos nas Tábuas IV e V, cuja distribuição alterei posteriormente para dar resposta menos insatisfatória a problemas epigráficos levantados por um achado arqueológico recente. Nos dois anos que separaram o espectáculo da edição, também apurei, naturalmente, um bom número de soluções lexicais ou sintácticas.

Contrariando uma tendência de anos recentes, exemplificável com algumas traduções de Homero feitas por Frederico Lourenço, optou por uma tradução e por uma edição ostensivamente eruditas. Porquê?
Não creio que uma edição do Gilgameš pudesse caber nessa tendência. Seria quase afrontoso publicar o poema babilónico sem dar resposta às perplexidades ou apetências – pelo menos às mais previsíveis – que a sua leitura está destinada a suscitar, nomeadamente em vista do seu estado de conservação, dos aspectos interpretativos que são internos às possibilidades da leitura contemporânea, e da situação literária e produtiva de que emana, que não podia ser mais remota. Para a Odisseia, por exemplo, estas circunstâncias são de menor ou nula relevância; o protocolo de leitura está mais ou menos interiorizado e o escrutínio a que esse texto foi submetido isenta os seus tradutores de recapitulações exaustivas.

Mas permita-me que conteste a sua ideia de uma tendência recente, tal como a descreve. Estou inclinado a supor que essa tendência pertence mais ao foco mediático do que aos factos. Acabei de ler, por exemplo, uma edição recente, da Gulbenkian, dos Textos da Literatura Egípcia do Imperio Médio, da autoria de Telo Ferreira Canhão, e recordo como exemplo de como ler e editar um texto a edição dos professores Mário Jorge de Carvalho e Nuno Ferro do maravilhoso texto de Kierkegaard, Adquirir a sua Alma na Paciência, na Assírio & Alvim.

São traduções eruditas, no sentido que invoca, e relativamente recentes; apesar de extraordinárias, e de se aprender mais com elas do que com um trimestre inteiro de edição industrial, creio que nenhuma delas mereceu qualquer menção na crítica impressa. Espero entretanto que a tendência de que fala não resulte na depreciação do que é “erudito”. Embora não tenha um amor excessivo a essa palavra, assinalo que certos textos, para se revelarem, precisam de uma conversa prévia ou periférica e de alguém que se coloque em situação de iniciá-la. Eu, por exemplo, ainda hoje não sei que canção cantaram as sereias a Ulisses e bem gostaria que houvesse alguém a dizer-mo.  

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Não existindo um texto de partida pacífica e definitivamente estabelecido, esta não é uma simples tradução. O que procurou alcançar com as opções editoriais feitas?
Sim, trata-se de uma tradução que não poderia respirar sem aquele trabalho que, no mundo editorial anglo-saxónico, corresponde à figura do editor (diferente do publisher). Para responder à sua pergunta: procurei, antes de mais, a melhor articulação possível de fontes que provêm de lugares, línguas e até milénios diferentes, e que são incompletas e, muitas vezes, mudas quanto ao seu lugar e relevância. "Melhor" significa aqui: inteligível quanto à narrativa e correspondendo a uma aproximação ideal das intenções do compilador babilónio.    

Que razões o levam a propor esta tradução como “um segundo momento” da tradição textual inaugurada com a edição crítica inglesa de 2003?
Essa edição de Andrew George revela-nos fragmentos textuais até então ignorados e estabelece os critérios editoriais a partir dos quais nos é permitido, por um lado, articular o texto já conhecido e, por outro, pensar a integração de descobertas ulteriores. Ora, o panorama editorial internacional só registou, até agora, duas traduções integrais do poema que reflectem, de raiz, as descobertas e os critérios de George; uma alemã, de Stefen Maul, já com integração de achados posteriores à edição crítica, que ele próprio decifrou, e a minha, que é a primeira a incorporar numa edição "harmónica" o texto do mais importante achado das últimas décadas, o do museu de Suleymaniah, só editado em 2014. Traduções especializadas entretanto aparecidas em Itália e em Espanha, após a edição crítica, são reedições de trabalhos da década de 1990; embora reflictam as descobertas de George, mantêm-se autoralmente fiéis às suas premissas iniciais.

Procurou conciliar a “máxima literalidade” e a “inteligibilidade da sintaxe portuguesa”. Qual delas privilegiou?
A segunda, naturalmente. O decisivo aqui é que se trata de um poema que se quer lido, enquanto tal, por leitores portugueses e não babilónios.

O que pensa das traduções prosaicas (recurso habitual em ocorrências de semelhante dificuldade) e, no caso português, da versão de Pedro Tamen?
Há a respeito do trabalho de Pedro Tamen uma confusão que decerto ele próprio não desejará. Esse trabalho não é uma tradução em prosa do poema acádio do segundo milénio a. C. É a tradução de uma prosa inglesa, redigida na década de 1950 por uma divulgadora chamada Nancy Sandars, que se limitou a transvazar materiais babilónicos heterogénos então conhecidos em forma romanesca. O facto de na capa da edição portuguesa não constar sequer o nome da autora, permitindo a impressão errónea de que se trata do épico babilónio, sugere-me, entre outras, a reflexão de que trabalhos desse género são mais prejudiciais que benéficos. Quanto à questão genérica das traduções em prosa: dê-se por favor ao suplício de imaginar uma versão em prosa das Elegias de Duíno ou do Cimitière Marin. Chamar-lhe-ia tradução? Parece-me que soluções desse tipo padecem de dois pecados: orçam por cima a boa-fé do leitor e acumulam capital autoral na pessoa do tradutor, que desse modo se deixa equiparar a uma espécie de paraíso fiscal da poesia. 

Afirma que a versão padrão (BP) exibe já um “marcado teor autoral”. Em que medida?
A BP é uma rapsódia. Embora tenhamos conhecimento incompleto dos materiais de que se abasteceu o seu autor, é perfeitamente evidente que ele não os quis deixar intactos. Por um lado, expandiu o corpus herdado com escrita original; por outro, foi parcimonioso e coerente nas modificações ou rasuras que efectuou. As 28 linhas prologais, da sua lavra, são eloquentes quanto a este aspecto, pois colocam imediatamente a velha história de um rei sumério, de tom predominantemente heróico, sob o signo de uma relação inesperada: a que faz depender a obtenção de sabedoria da experiência do sofrimento. Ter-lhe-á interessado adequar a narrativa herdada a uma meditação sobre a mortalidade e é essa inflexão temática que prepara ou comanda a restituição que nos faz dos episódios singulares e os unifica, digamos, numa ordem paradigmática consciente dos seus efeitos. Os aspectos especificamente literários, entretanto, são menos susceptíveis de um veredicto de autoria. A expressão é padronizada e não difere assinalavelmente do que se praticava nas escolas escribais da época. Sob esse aspecto, o redactor é menos original — melhor, a originalidade não é para ele, uma questão.

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Um provável Gilgameš do Museu do Louvre, em Paris

Esta edição ambiciona servir simultaneamente o leitor leigo e o especialista. São conciliáveis?
A resposta é um sim enfático. Um especialista é apenas um leitor leigo mais tenaz (ou menos parcial). Estão ambos abrangidos por uma velha máxima aristotélica que todos os dias encontro comprovada: todos os homens desejam naturalmente saber. Nem sempre encontro comprovação de que esse desejo se queira relacionado com livros, é certo, mas não custa nada tentar. Da minha parte, e com excepção de uma das notas finais da edição, não faço uso de duplo critério para me endereçar a um e a outro.

A assiriologia não é, creio, o seu campo académico. Tem alguma expectativa particular quanto à recepção que este seu trabalho possa merecer dos especialistas?
O trabalho será recebido pelos especialistas com alegria, presumo. Oxalá também com sugestões ou reparos que possam enriquecer a minha aprendizagem e futuras edições do trabalho.

Qual o estatuto deste “épico” no seu “cânone” pessoal, enquanto leitor?
Alguma divulgação bem intencionada costuma proclamar que o poema de Gilgameš é o texto mais antigo do mundo. Não é (e qual seja é impossível determinar). É, no entanto, a narrativa que os mais antigos leitores do mundo mais se preocuparam em preservar e copiar. A sua circulação e assiduidade no mundo antigo terá instituído terreno fértil para que se originassem algumas das singularidades que estamos habituados a associar à experiência literária: a diferenciação de uma voz autoral, por exemplo, ou o recorte lírico, de que não encontramos instâncias anteriores à Tábua V.

Mais importante do que isso, é talvez o facto de se constituir como o primeiro texto centrado numa personagem, isto é, um centro de conflito entre o desejo e a ordem objectiva do mundo. Trata-se de uma figura para a qual a morte própria constitui o acontecimento primordial da sua existência. É assinalável — e, seguramente, mais uma comprovação da premeditação autoral do texto — que essa consciência da morte, por parte de Gilgameš, seja uma consequência da morte do seu "par", Enkidu, o homem primitivo criado por deliberação divina. Este sacrifício do homem divino e primitivo é assim simbólico de um nascimento substitutivo, o da subjectividade que transporta a consciência da finitude e que, no fim, ao regressar à cidade humana, propõe uma certa ideia do conhecimento como consolo último. Trata-se, em suma, do texto em que ocorrem dois nascimentos solidários e indiscerníveis: o da personagem e o da humanidade votada à morte.

Não sei como adequar estas observações à ideia de um cânone pessoal (desde que me veio ter às mãos certo livro muito lido e fiquei a saber de um "cânone ocidental" em que não têm lugar Flaubert, Rilke, Mallarmé ou Dostoievski, passei a achar que, com essa palavra, todos os cuidados são poucos). Da minha parte, sou sensível também às circunstâncias culturais dos textos, e até às empíricas. Imagino, com comoção, a extracção do barro às margens do Eufrates, para que nele se pudessem inscrever narrativas. Imagino essas placas, inscritas com arcanos e palavras capazes de sustentar o universo humano, a secar ao sol ou a cozer nos fornos em que também se fazia o pão. Tudo isso me faz pensar num assombro que emanaria da palavra escrita e que já não estamos em condições, talvez, de determinar. Serei talvez vítima da ilusão que costuma confundir o mais antigo com o mais primordial. Mas ao ler os textos mesopotâmicos, em especial o Gilgameš, sinto-me sempre (talvez ingenuamente) à espera de surpreender os passos perdidos dessa seriedade abismal sem a qual a literatura não poderia ter vindo à existência. 

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