Gilgameš, aquele que testemunhou o abismo

Perdida durante quase dois mil anos, a epopeia babilónica tornou-se um clássico global no último século e meio. Conhece agora a sua primeira tradução portuguesa fidedigna.

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Um provável Gilgameš do Museu do Louvre, em Paris

Quando o assiriologista amador inglês George Smith comunicou à Sociedade de Arqueologia Bíblica de Londres, em Dezembro de 1872, que descobrira em placas de argila provenientes de Nínive e depositadas há vinte anos no Museu Britânico uma narração do Dilúvio anterior à do Génesis, a revelação foi noticiada na primeira página dos jornais de ambos os lados do Atlântico. Quase dois mil anos depois de haver desaparecido da memória dos homens com a extinção da escrita cuneiforme, iniciava-se, assim, a segunda vida de um dos mais difundidos poemas do Médio Oriente nos primeiros dois milénios antes de Cristo: o Épico de Gilgameš.

Meio século depois de Smith, o então adolescente Elias Canetti assistiu a uma leitura pública da epopeia, feita em Frankfurt pelo actor Carl Ebert. No segundo volume da sua autobiografia, o escritor relata que, “como nenhuma outra coisa do mundo”, a descoberta de Gilgameš teve “uma influência decisiva” sobre a sua vida e o seu “sentido mais íntimo” – “Senti o efeito de um mito: de qualquer coisa em que pensei de várias maneiras durante o meio século seguinte.” Pela mesma altura, Rilke recomendava vivamente o poema aos seus interlocutores epistolares e, mais interessante, descobria no estado fragmentário do texto um aliado da sua grandeza estética, que melhor se revelaria, aliás, quando o poema era recitado. Freud, Jung, Mann e Hermann Hesse (que na sua idealizada biblioteca de “literatura universal” o colocou ao lado dos grandes clássicos indianos e do Antigo Testamento) contam-se também entre os primeiros influentes e atentos leitores contemporâneos de Gilgameš.

Há uma explicação simples: as primeiras traduções fidedignas modernas do épico babilónico surgiram em língua alemã logo no início do século XX. Hoje, editado e traduzido das mais variadas e discutíveis maneiras nas mais variadas línguas, objecto de inúmeras “adaptações” (musicais, teatrais, infantis, para BD, etc.) e de outras tantas interpretações (desde a psicanálise aos estudos mitológicos e de género) o Épico de Gilgameš, ainda e sempre fragmentário e mutável, ainda e sempre inesgotável (estão apenas recenseados e traduzidos dois terços dos cerca de 3 mil versos do poema), tornou-se, universalmente, o primeiro de todos os “clássicos”. Em português (de Portugal), e para além de fragmentos traduzidos no âmbito de ensaios ou estudos mais ou menos académicos, circulou nos últimos 40 uma esforçada versão prosaica feita pelo poeta Pedro Tamen a partir de uma estropiada versão inglesa. A presente tradução de Francisco Luís Parreira vem suprir uma lacuna. Mas não é só isso. Trata-se, por inerência, de uma edição histórica. E é já um dos melhores “livros do ano”. Deveria ser também um “acontecimento” literário.

De que trata, afinal, o Épico de Gilgameš? O que é que torna esta obra tetramilenar tão contemporânea e universal? Embora haja fontes sumérias datáveis do final do terceiro milénio antes de Cristo, a rapsódia poética caldeada ao longo de séculos por várias línguas e povos, e que estabilizou na compilação que hoje designamos por Épico de Gilgameš por volta do final do segundo milénio (a. C.), chegou até nós em cópias em cuneiforme acádio datadas do século VII (a. C.) e que pertenceram à famosa biblioteca do rei assírio Aššurbanipal, de cujas ruínas foram resgatadas em meados do século XIX. Tal versão, designada Babilónia Padrão (BP), é a versão mais tardia e mais completa do longo poema, que narra em linguagem alta e grave, as andanças de um lendário rei de Uruk (Baixa Mesopotâmia).

O algo fanfarrão e tirânico Gilgameš, “dois terços deus e um terço homem”, ou “aquele que testemunhou o abismo” (incipit da primeira das doze “Tábuas” canónicas do poema), parte com Enkidu em busca da glória mundana. Mas a morte do amigo (ressentida com uma pungência que anuncia aquela de Aquiles diante da morte de Pátroclo) transfigura-o e o herói, inconsolável e de “rosto despenhado”, consciente do pavoroso destino comum da humanidade, vai agora em busca da vida eterna. A amizade, a dor da morte, a vaidade vã de todas as acções humanas (o Dilúvio não será o único motivo reconhecível pelos leitores familiarizados com o Antigo Testamento) são os temas da obra. Se o selvagem Enkidu, no início do poema, é civilizado pelo sexo (e também pela gastronomia), o desbragado Gilgameš, no final, é humanizado pela morte. O herói aprende a morrer e regressa a casa. O Épico de Gilgameš é heróico e sapiencial.

Luxuriantemente anotada e comentada (o corpo do poema ocupa uma centena de páginas, as restantes 150 sendo consagradas à minúcia exegética), valorosa e ostensivamente erudita, a tradução de Francisco Luís Parreira parte do “texto sinóptico transliterado da edição crítica” (trata-se da edição de 2003 do reputado assiriologista inglês Andrew R. George), mas teve em conta “os contributos trazidos pelos achados recentes” (onze fragmentos novos identificados no Museu Britânico e um outro “resgatado, já em 2011, ao saque patrimonial em curso no Iraque e na Síria”) e os “estudos assiriológicos posteriores”. A prática habitual de suplementação das lacunas existentes nas fontes seguras (as placas de argila do Museu Britânico, por exemplo) com recurso a textos anteriores à versão BP, ou com ela concorrendo, é liberalmente seguida, e até alargada, pelo tradutor. E, se a “monumental edição” de George “tornou obsoletas todas as traduções ou edições anteriores”, da presente se pode dizer que se tornará indispensável a todas as traduções ou edições futuras em português.

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