“Vai ser impossível viver aqui quatro anos.” Ryszard Hoppe estava enganado!

O seleccionador nacional de canoagem, Ryszard Hoppe, chegou pela primeira vez a Portugal há 23 anos e fixou-se há 12 em Montemor-o-Velho. Por enquanto, ainda quer evitar o regresso à Polónia natal.

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Em Março de 2005, quando Ryszard Hoppe entrou pela primeira vez no Centro de Alto Rendimento (CAR) de Montemor-o-Velho e olhou em redor, para a pacatez reinante, disse para si próprio: “Oh pá! Vai ser impossível viver aqui quatro anos.” Estava profundamente enganado. Doze anos depois, este polaco, seleccionador nacional de canoagem, já sofre ao antecipar que um dia irá regressar à sua cidade natal, de 400 mil habitantes. Muito por causa dele, Montemor-o-Velho e Portugal deixaram de soar estranho na Polónia.

Se Portugal passou a estar no mapa da canoagem mundial e a modalidade uma potencial fonte de medalhas olímpicas para o país, deve-o muito a Hoppe. Em pouco tempo, este veterano treinador, de 65 anos, revolucionou a prática daquele desporto em Portugal e, desde então, somou mais de uma centena de medalhas nos principais eventos internacionais. A cereja no topo do bolo foi a prata conquistada nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, pela dupla Fernando Pimenta/Emanuel Silva.

Nas últimas Olimpíadas, no Rio de Janeiro, não houve pódios, mas por muito pouco. Na variante caiaque, um quarto lugar em K2, um quinto, em K1, e um sexto, em K4, deixaram água na boca, mas acabaram por ser o segundo maior registo de sempre na história da modalidade, apenas superado por Londres. Em 2005, este cenário era absolutamente irreal.

“No meu primeiro dia aqui no CAR de Montemor, entrámos numa sala onde estava um grupo de 15 atletas. Olhei para eles e pensei: ‘Homem, o mais certo é ficares aqui só um ano, porque com este grupo não vai dar nada.’ Fisicamente eram muito pequenos e não me pareciam talhados para a prática”, recorda ao P2, num português “suficiente para sobreviver”, sentado numa esplanada de café, com o imponente castelo de Montemor-o-Velho como pano de fundo.

Monumentos históricos & calor humano

“Isto aqui é tão diferente da Polónia”, garante, apontando para a pequena vila. Mas está a referir-se ao país, de uma forma geral. “As pessoas são diferentes, mais abertas do que na Polónia. São mais sociáveis, abertas e felizes, têm vontade de conviver e falar.” Gosta mais do Norte do país do que do Sul, pelo verde e constante contraste na paisagem, pelos inúmeros monumentos históricos e pelo calor humano.

Portugal foi o primeiro país estrangeiro que Ryszard Hoppe visitou. Foi em 1994, quando recebeu um convite para ser treinador da Associação Desportiva de Amarante. A experiência durou dois anos, antes de regressar a casa para orientar a selecção do seu país, após os Jogos Olímpicos de Atlanta. Realizou dois ciclos olímpicos – Sydney (2000) e Atenas (2004) – e regressou a Portugal, desta vez para desempenhar as funções de seleccionador.

Na vila de Montemor-o-Velho, o polaco da canoagem é uma figura bem conhecida. O CAR é um dos orgulhos da vila e está logo ali ao lado. É lá que encontramos pela primeira vez Ryszard Hoppe, com o equipamento da selecção e a inseparável bicicleta, com a qual se desloca ao longo dos 200 metros de um enorme pavilhão, com ginásio, sauna, balneários, gabinetes e uma ampla zona para a arrecadação de barcos. Um pouco à frente está a pista de água de dois quilómetros. A estrutura desportiva está preparada para receber 90 atletas em regime regular, mas pode acolher 700 durante eventos desportivos.

Nesta manhã ensolarada de final de Fevereiro, está ali a treinar a selecção russa masculina de sub-23 de K1 e duas remadoras deste país, entre as quais, Noshkin Roman, vencedora da medalha de bronze em K1, no Rio de Janeiro. Ao lado, estão alguns atletas polacos. “Costumam vir também equipas da Bielorrússia, Uzbequistão, Holanda e Inglaterra, que aproveitam as boas condições meteorológicas em Portugal neste período de Inverno. Não há outro sítio assim na Europa”, explica Hoppe, antes de ir ter com os seus atletas, que estão a treinar na pista aquática, a pedalar vigorosamente ao longo da margem.

Para a popularidade de Portugal como local privilegiado para a prática da modalidade no Inverno, contribuiu bastante a fama que Ryszard conquistou no seu país nos últimos anos. Especialmente depois de ter sido homenageado como melhor treinador do ano, em 2012, pela Confederação do Desporto de Portugal, pela inédita medalha de prata conquistada em Londres. “Eles [os polacos] pensaram que era uma coisa quase impossível, ainda mais num país que tem treinadores de renome, como José Mourinho, e em que o seleccionador de futebol [Paulo Bento] tinha levado o país às meias-finais do Europeu desse ano.”

De súbito, o telefone não parou de tocar. “O assunto foi muito falado no meu país. Ligaram-me muitos jornalistas, o embaixador e até o ministro dos Negócios Estrangeiros, para me darem os parabéns. Para eles, era incrível que um treinador de canoagem ganhasse este prémio e a notícia passou em todos os programas de televisão.” Portugal passava a ser mais do que o país de Cristiano Ronaldo e a terra do fado, estilo musical muito apreciado pelos polacos, que esgotam sempre em poucos minutos os bilhetes para os concertos de Mariza.

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Páscoa em Portugal, Setembro na Polónia

Formado em Educação Física e Biologia, dois cursos que estavam associados na Polónia comunista, Ryszard Hoppe nasceu em 1951, na cidade de Bydgoszcz. Foi para aqui que os seus pais regressaram no rescaldo da II Guerra Mundial, que devastou o país. “A minha mãe foi levada para um campo de trabalho na Alemanha e o meu pai foi obrigado a integrar o exército nazi e combateu na Grécia e ex-Jusgoslávia.” Em Bydgoszcz, casou e é lá que vive a sua mulher, as duas filhas gémeas e os quatro netos.

“Eu e a minha mulher temos uma espécie de protocolo. Ela vem aqui passar as férias da Páscoa e volta em Junho e Julho, algumas vezes com o resto da família. Eu vou lá cinco ou seis semanas, após o final da época desportiva, em Setembro, e também durante o Natal e a passagem de ano. Todos gostamos muito de Portugal.” Estadias que o deixam sempre com saudades da sua segunda terra. “Já falei com a minha mulher, mas será difícil viver aqui na reforma, por causa dos nossos netos”, explica.

Teve convites profissionais para regressar à selecção polaca e mesmo para treinar no Brasil, mas recusou sempre sair de Portugal. “Acabei por aceitar fazer mais um ciclo olímpico, até 2020. Depois penso encerrar aqui a minha carreira de monitor e treinador, que já leva 47 anos.” Como praticante, nunca chegou a sénior por causa do irmão mais velho, também ele canoísta. Em 1967, aproveitando uma prova na Suécia, ficou exilado neste país. As autoridades comunistas não perdoaram a “traição” e proibiram Hoppe de sair do país durante 11 anos. Sem possibilidade de competir a nível internacional, optou por abandonar a prática e assumir-se como treinador, logo aos 19 anos.

Com a queda do regime comunista, os problemas não acabaram, mas melhoraram bastante ao nível das liberdades individuais e na qualidade de vida. “Agora, voltámos a viver um período problemático, com manifestações contra este Governo ultraconservador. Para mim, estes novos responsáveis são pessoas malucas, estragaram as relações com a França e a Alemanha. A televisão pública está completamente governamentalizada e cada vez se parece mais com o regime antigo.”

Em Portugal, no sossego de Montemor, estes problemas parecem, para já, distantes. “Gosto da vida aqui. Tenho uma boa relação com toda a gente. Adoro o peixe (na Polónia, come-se mais carne), mas quase toda a comida é boa e o vinho também. Adoro arroz de lampreia [uma das iguarias de Montemor-o-Velho] e a única coisa que não aprecio são as sardinhas assadas. Comi uma numa festa de São João que devia estar estragada e fiquei doente durante cinco dias”, conta.

Mas aquilo que Ryszard irá sentir mais falta se regressar à Polónia são os cafés. Ergue uma chávena que acabou de pedir num restaurante, com um prazer indisfarçável: “Quando regresso, é a primeira coisa que bebo quando chego ao aeroporto. É o melhor café do mundo!”

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