Dança escaldante em noite gelada

Brother, que sucede ao muito bem-sucedido Hu(r)mano, é uma criação assinalável de Marco da Silva Ferreira.

Foto
PAULO PIMENTA

De calças de treino cinza e sweatshirt azul, um homem dança em silêncio no palco semi-obscurecido e vazio. Flutua, desliza, ou suspende o movimento com contracções súbitas de segmentos do corpo, num gesticular mecânico de boneco desengonçado. Pensamos no roboting ou no clowning, figuras de estilo do hip-hop. Ou procuramo-las (?), porque sabemos ser uma peça de Marco da Silva Ferreira (Santa Maria da Feira, 1986), e as danças urbanas a imagem que se lhe colou depois de ter vencido o concurso televisivo Achas que sabes dançar? (2010). Ainda assim, já era claro em Hu(r)mano (2014), a sua obra anterior (ainda em bem-sucedida digressão internacional), que a matriz das subculturas urbanas era quase residual. Esta é uma dança em busca de outras direcções.

Sem o grilhão da batida musical, o envolvente solo inicial de Vítor Fontes ganhou espaço para explorar qualidades e detalhes do movimento, colocando a peça, desde logo, num registo menos óbvio. Os sete intérpretes  com formação em dança contemporânea, danças de salão, performance, desporto, hip-hop, artes marciais, ou belly dance  emprestam os seus sotaques idiomáticos a um todo de difícil classificação. Percursos diversos, a dar-nos conta do quanto são hoje imprevisíveis as vias de chegada à dança contemporânea.  

Virtuosismo, acrobacia e alta intensidade são parte da força sedutora de Brother. A peça é, todavia, bem mais do que um desfile de corpos competentes. O silêncio absoluto ou os potentes ritmos electrónicos (em distintos padrões, volumes e texturas) contraem ou expandem os níveis energéticos em cena; técnicas do hip-hop são retrabalhadas: o moonwalking, as battles, o freezing (corpos rígidos, que aqui são arrastados) ou o tutting (poses bidimensionais, inspiradas na arte do Egipto Antigo, referência ao faraó Tutankhamon) servem a dramaturgia e o universo temático.

A pulsação conjunta dos intérpretes fala-nos de conexões fraternas: como se a coreografia tivesse nascido de dinâmicas de grupo em improvisações não-verbais, os performers observam-se mutuamente, e deixam-se contagiar pelo som, ou por outro corpo, em acções uníssonas; por vezes, surge uma liderança, que propõe novos movimentos ao colectivo. Com subtileza, estes efeitos são reforçados: há cadências musicais prolongadas pelo som das respirações, e vozes que ficam a ressoar no ar. Um clímax sensorial é atingido quando, num transe quase ritualístico, o grupo nos transporta ao ambiente de uma rave.

Esta homenagem subliminar à cultura hip-hop arrisca, perto do final, um volte-face: a roupa casual dá lugar a insólitas vestimentas e a gestos teatrais, algo entre o barroco e o carnavalesco. Poder-se-ia aqui ler uma paródia às danças de corte, um comentário a (outras) danças sociais de há quatro séculos, que deram origem ao ballet e à sua chegada aos grandes teatros europeus. A ideia é curiosa, mas requeria outro amadurecimento.    

A entrada do hip-hop nos palcos contemporâneos não é novidade. Existem excelentes exemplos, este não é um caminho fácil. Contudo, a aturada investigação e selecção de materiais na base da sua peculiaríssima estética e linguagem fazem de Brother uma obra assinalável. O vetusto Rivoli ferveu na noite gelada do seu 85.º aniversário.

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