O passado excitante

Gonçalo F. Cardoso conseguiu algo raro: fazer do passado matéria viva e excitante.

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Negra Branca: cânticos de trabalho a irromper por uma teia de percussão e teclado psicadélico

Gonçalo F. Cardoso, português fixado em Londres desde 2001, é o cérebro por trás da Discrepant, que tem no seu catálogo emissores de loops de orações budistas e discos de gente como Tiago Sousa e Mike Cooper. Neste primeiro volume da série Antologia de Música Atípica Portuguesa, dedicado ao trabalho, com edição agendada para 27 de Janeiro, nove artistas e grupos portugueses exploram criativamente a música popular e tradicional portuguesa. O espírito de Michel Giacometti anda por aqui, mas só como inspirador de uma música sem filiação: a base de trabalho é portuguesa e tradicional (através de samples de canções de trabalho, gravações de campo, entre outras fontes), o resultado ultrapassa geografias e cânones.

A fotografia de conjunto arrisca uma hipotética música do mundo para a qual convergem velhas tradições portuguesas e os olhares contemporâneos vindos do jazz, do noise e da electrónica. Em O espatelar do linho, o momento alto da compilação, Negra Branca (Marlene Ribeiro) põe cânticos de trabalho a irromper, como fantasmas, por uma teia de percussão e teclado psicadélico. Cicuda, dos EITR, tem um saxofone lento às voltas sobre o que parecem ser sons de chuva, fábricas e comboios. Enquanto Gonzo, Gonçalo F. Cardoso lança-se a Agora baixou o sol, canção de Trás-os-Montes, retirando-lhe apenas um verso (“agora baixou o sol para trás daquela serra”) para o manipular e transformar em mantra lento e misterioso. É um exercício de contenção: não há quase mais nada do que isso, com excepção de pedaços de som que aparecem e desaparecem, mas é belo e enigmático.

Há outros temas ainda mais distantes das fontes de inspiração. Live Low faz um dub quase monástico – baixo, percussão e reverberação em pezinhos de lã, cuidadosamente dispostos; sintetizador discreto; vozes solenes, sem origem identificável. Filipe Felizardo destrói qualquer tradição – cânticos tristes, indecifráveis – em golfadas de ruído eléctrico (na guitarra de Felizardo, os blues transformam-se em noise e vice-versa) e os Calhau! deliram com a sua electrónica de baixo custo.

No fim do disco, Peter Forest apresenta entrevistas a homens e mulheres que se lembram de Maria Cavaca, uma cantiga de trabalho que a mecanização e a crise da agricultura atiraram para o esquecimento. Ouvimos fragmentos da canção, mas isto não é uma recolha, tal como Antologia de Música Atípica Portuguesa não é um documento académico de fixação do passado. Gonçalo F. Cardoso conseguiu algo raro: fazer do passado matéria viva e excitante.

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