Ao desenhar um puzzle sobre o estado do mundo, Paulo Moura faz literatura

Ao desenhar um puzzle sobre o estado do mundo e os acontecimentos que aqui nos trouxeram, Paulo Moura ultrapassa esse valor testemunhal e faz literatura.

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A escrita de Paulo Moura é literatura como a de Svetlana Alexievich ou Ryszard Kapuscinski

Paulo Moura (n. 1959) foi durante 23 anos jornalista do PÚBLICO. Durante este tempo, e mais tarde como repórter freelance, fez reportagens em zonas de crise um pouco por todo o mundo, e é, muito provavelmente, o único repórter português a ter estado presente em quase todos os acontecimentos que conduziram o mundo ao seu estado actual. Da Argélia (1991-1992) à crise dos refugiados líbios na Turquia (2013-2016), Paulo Moura passou – e referindo apenas os lugares que nomeiam capítulos deste livro – pelo Iraque (1995, 1997), Tchetchénia (1995), Caxemira (1997), Kosovo (1999), Afeganistão (2001), de novo o Iraque (2003), Sudão (2004), Egipto (2011), Líbia (2011) e Turquia (2013, 2016); acompanhou ainda acontecimentos em Angola (1992), na Rússia (1996), na Mauritânia (1998), na Albânia (1999) e na Ucrânia (2014). Ao longo de todos estes anos foi juntando centenas de cadernos de várias cores e tamanhos, são blocos de notas da sua vida de repórter, comprados nos cantos mais remotos do mundo, com cuidado e critério, “como se não pudesse entregar o que via, ouvia e sentia a um guarda que não fosse da minha inteira confiança”, como confessa na introdução a Depois do Fim, o livro da sua autoria publicado recentemente – que não é uma compilação de reportagens nem uma antologia das que saíram em jornal, muito menos um conjunto de histórias ordenadas cronologicamente, apesar de o tempo ser o seu eixo há nele um propósito de mostrar algo, mas lá iremos mais adiante.

Depois do Fim é um livro cuja escrita (ou no caso de alguns textos, a reescrita) teve como base de trabalho as tais centenas de canhenhos que o repórter foi guardando num baú, cadernos e blocos com apontamentos tomados muitas vezes em cenários de guerra e de desespero, notas que foram escritas para o repórter conseguir manter a sanidade, “não perder o pé”, pois como confessa Moura no livro, “o acto de registar mantinha-se ligado à racionalidade”.

O título do volume, e também o seu subtítulo (Crónica dos Primeiros 25 Anos da Guerra de Civilizações) encerram uma clara ironia que traz ao pensamento do leitor o volume de ensaios O Fim da História, de Francis Fukuyama, e o artigo que Samuel Huntington escreveu em resposta a este, em 1993, publicado na revista Foreign Affairs, O Choque de Civilizações. Ao longo do livro, e seguindo o fio do tempo, o leitor apercebe-se, curiosamente, que nestes últimos 25 anos há acontecimentos que parecem repetir-se em locais e em alturas diferentes: “Salta à vista que o modelo de protesto criado na Praça Tahrir do Cairo é replicado na praça do tribunal de Bengazi e, depois, na Praça Taksim de Istambul e na Maidan de Kiev”, nota Moura na Introdução. Ou ainda: “Os mujahidin da guerra do Afeganistão de 1979 surgem entre os integristas da Argélia em 1992; estes estarão entre os independentistas tchetchenos, em 1995, e com os elementos da Al-Qaeda que planearam os atentados de Nova Iorque em 2001, que estarão de novo no Magrebe com os revolucionários do Facebook das Primaveras Árabes, em 2011.” Lendo Depois do Fim, fica-se com a perturbante sensação de que há uma espécie de ‘História paralela’ que vai provocando “ondas sísmicas através do tempo”, e que os acontecimentos se encontram ligados por vezes com fios quase invisíveis, que só a distância temporal e o olhar do repórter aclaram. É o fio do tempo, e como ao longo dele os acontecimentos passados conduziram o mundo ao seu estado actual, o eixo temático deste livro. Foi isto que parece ter orientado Paulo Moura na escolha dos locais (e dos seus cadernos de apontamentos) onde esteve a presenciar por vezes o “princípio do mundo” – como conta sobre a Cabul libertada dos talibã ou sobre o derrube da estátua de Saddam Hussein, momentos que foram de qualquer forma inaugurais e fulcrais de outros acontecimentos que se seguiram noutros lugares do mundo. Torna-se assim óbvio que “o 11 de Setembro já vinha anexado à saga dos mujahidin que afluíram de todo o mundo árabe para combater os soviéticos no Afeganistão, de 1979 a 1989”, essa guerra que levaria anos depois à Perestroika na URSS e à queda do comunismo e do Muro de Berlim.

Fukuyama e Huntington estavam enganados. O primeiro porque a História não acabou nem as ideologias morreram, o segundo porque afirmava que os conflitos passariam a ter como motivo as diferenças culturais e civilizacionais. Ora, o que Depois do Fim mostra é que essa “dicotomia civilizacional é falsa”, pois o islamismo – como se entende pelas narrativas deste livro, como um movimento que quer conquistar o poder político para impor a lei islâmica – é uma ideologia e não uma religião (afirma-o Paulo Moura). As guerras das últimas décadas assentaram assim em pressupostos falsos, em “material onírico”, pois “o movimento jihadista foi incentivado, ajudado, armado, treinado – no fundo, criado – pelos EUA e o Ocidente em nome de afinidades civilizacionais. Tratava-se de unir as civilizações fundadas nos valores espirituais e religiosos (fossem cristãs ou muçulmanas) para combater os comunistas ateus e materialistas”.

Depois do Fim ultrapassa em muito o seu valor testemunhal, os textos nele incluídos são literatura no sentido do poder poético das palavras, da escrita, do olhar tão singular que Paulo Moura tem sobre os “pequenos” acontecimentos, as tragédias e as comédias de que é feita a História; é literatura como é literatura a escrita de Svetlana Alexievich ou Ryszard Kapuscinski.

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