Portugal, o país do fado, também dança kuduro e canta soul

No Eurosonic fez-se um resumo histórico da música feita em Portugal, de Amália aos Buraka e praticou-se com Rodrigo Leão, Marta Ren, Gisela João e Throes + The Shine.

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A meio do concerto de Marta Ren, quinta-feira à noite no Eurosonic de Groningen, um casal dançava à nossa frente, não resistindo à sonoridade soul-funk clássica que vinha do palco, perguntando-nos às tantas de onde era aquela cantora. Quando respondemos que era de Portugal, olharam um para o outro, perplexos, como se não quisessem acreditar. “A sério? Não pode ser!” Pode sim.

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A meio do concerto de Marta Ren, quinta-feira à noite no Eurosonic de Groningen, um casal dançava à nossa frente, não resistindo à sonoridade soul-funk clássica que vinha do palco, perguntando-nos às tantas de onde era aquela cantora. Quando respondemos que era de Portugal, olharam um para o outro, perplexos, como se não quisessem acreditar. “A sério? Não pode ser!” Pode sim.

Associar um determinado tipo de música a um país é uma ideia cada vez mais posta em causa, num mundo cada vez mais interdependente. Mas, sim, ainda se sente. Portugal ainda é sinónimo de fado. O panorama começa, porém, a mudar. Até porque não é de hoje que Portugal é muito mais do que apenas fado. 

Durante a tarde dessa quinta-feira, numa conferência sobre a música feita em Portugal, falou-se sobre algumas das figuras que marcaram essa história ao longo das últimas décadas, de Amália aos Buraka Som Sistema. E durante a noite, em Groningen, assistiu-se à actuação ao vivo de alguns músicos, de Gisela João a DJ Firmeza, junção de teoria e prática, e demonstração da actual diversidade de propostas.

Foi David Ferreira, rosto da Valentim de Carvalho e da EMI durante décadas, que propôs uma viagem sintética à volta da música feita em Portugal, com paragens no fado e Amália Rodrigues, na canção de protesto e José Afonso, na afirmação do rock a partir do sucesso de Rui Veloso nos anos 1980, na modernidade pop de António Variações, no sucesso internacional dos Madredeus e na explosão sem fronteiras dos Buraka Som Sistema. Foi uma conversa moderada pelo jornalista Rui Miguel Abreu, que contou também com Pedro Coquenão (Batida) e Márcio Laranjeira (Lovers & Lollypops), em que foi vincado que existem diferenças entre o isolamento de quem cresceu no Estado Novo e a mundividência da geração Internet, mas continua por cumprir em parte o desígnio da música feita em Portugal ser exportada com consistência.  

Falando sobre a sua experiência no festival Eurosonic, onde está pela terceira vez, Pedro Coquenão deu algumas pistas sobre o que falta para isso acontecer, dizendo que não basta vir a uma montra europeia e arrancar uma excelente actuação perante uma audiência internacional. “Duas das vezes em que aqui estive senti que as coisas foram um pouco inconsequentes, mas quando vim com um booking, foi diferente. É preciso ter uma estrutura e organizar a vinda para gerar consequências.”

Faz sentido. É por isso que o Eurosonic, durante o dia, funciona como uma verdadeira maratona de negócios, com milhares de pessoas, entre promotores, managers ou agentes, promovendo reuniões de trabalho, negociando parcerias, participando em conferências ou workshops, ou tentando seduzir alguém que acabou de se conhecer para um projecto novo. Procuram-se parceiros para activar o que se tem para oferecer.

Talento não falta

Há noite esses profissionais misturam-se com o público anónimo, deambulando pelos mais de quatro dezenas de espaços onde há música ao vivo, num total de mais de 120 concertos diários de músicos de 42 nacionalidades. Naturalmente, como diz Pedro Coquenão, nestas condições concorrenciais não basta dar um bom espectáculo para que o Eurosonic sirva de rampa de lançamento, criando novas perspectivas de carreira, com digressões e novos contratos. É preciso planeamento, organização, estruturas de apoio e também, por vezes, que exista uma imagem cultural já criada, seja de um país, de uma cidade ou de um contexto criativo ao qual se pertence. Como reflectia Márcio Laranjeira: “Não são apenas os músicos portugueses que já conseguiram internacionalizar-se que podem impulsionar outros. É toda a vida cultural de um país que ajuda a criar esse efeito de reconhecimento nas pessoas.”

Nem mais. E nesse campo há ainda muito a fazer quando se fala de Portugal. Fala-se casuisticamente com alguns profissionais presentes, de diferentes países, e percebe-se um grande desconhecimento. Alguns nomeiam o fado, outros referem alguns festivais e dois ou três nomes, de Rodrigo Leão aos Buraka, passando por Batida e The Gift, e pouco mais.

E, no entanto, talento capaz de gerar adesão do público não falta. Mais uma vez isso ficou patente na noite desta quinta-feira, numa tradução prática da teoria transmitida durante a tarde, em que se havia falado do naipe de cantoras que se foi afirmando no contexto pós-Amália Rodrigues. Entre elas, claro, a voz de Gisela João, que voltou a vincar as suas faculdades interpretativas perante uma audiência que se lhe rendeu.

O mesmo aconteceu pouco depois com Rodrigo Leão e a sua banda, acompanhados na voz pelo australiano Scott Matthew, expondo as canções de Life Is Long, o álbum de canções pop orquestrais que lançaram em conjunto no final do ano transacto. E que bom foi ver Leão, no baixo ou nos teclados, como se estivesse em início de carreira, actuando perante um público que não o conhecia bem, mas conseguindo impor os climas nostálgicos e o envolvimento emocional transportado pela voz de Matthew. No final, os sete músicos, agradeceram a magnífica recepção.

Adrenalina total foi aquilo que os Throes + The Shine proporcionaram, numa sofisticada e gigante tenda colocada na praça central da cidade. Nevava na altura em que o quarteto se lançou na sua função, pelo que havia que gerar calor. E assim foi. Bateria galopante, guitarra endiabrada e os dois cantores-agitadores-bailarinos num frenesim total puseram toda a gente em delírio com a sua sonoridade serpenteante, de ritmos kuduro misturados com elementos de rock ou funk. São daqueles casos em que a vocação internacional está afirmada. Falta dar-lhe consistência.

Depois do fim dos Buraka Som Sistema, tanto os Throe + The Shine, como os Octa Push, que actuaram mais tarde, podem tirar dividendos do caminho aberto pelo grupo de Lisboa. Existe um evidente interesse dos agentes internacionais mais ligados às linguagens alternativas em relação ao que se passa em Portugal com as novas sonoridades de dança sincréticas. Isso também se pressentiu na prestação dos Octa Push, mescla de idiomas urbanos globalizados com aromas mais localizados do eixo África-Brasil-Portugal. Tal como está presente também na indomesticável música proposta pelo excelente DJ Firmeza, do contingente da editora Príncipe, que se fez representar a grande altura.

Mas a música feita em Portugal não tem de conter características locais para vingar fora de portas. Acima de tudo tem de ser boa. Que o diga Marta Ren & The Groovelvets, que se move pelos padrões mais reconhecíveis soul-funk, e conseguiu convencer a assistência que enchia o Grand Theatre, com um espectáculo de grande eficácia, servido pela sua poderosa voz e presença em palco e pelos músicos que a acompanham.  

Mais um sintoma de que a música feita em Portugal se faz de inúmeros tráfegos, seja através do fado, da modernidade pop, ou do vaivém de influências constantes, seja com África ou com Londres e Nova Iorque. À tarde havia-se falado disso. À noite a teoria transformou-se em prática.  

O PÚBLICO viajou a convite da Why Portugal