“A ideia de que o cidadão não se interessa é verdadeiramente tóxica”

Manuel Arriaga, autor do livro Reinventar a Democracia, é o principal dinamizador do Fórum dos Cidadãos, que se reúne pela primeira vez este fim-de-semana, em Lisboa. Em entrevista ao PÚBLICO, deixa um desafio: e se houvesse um Ministério da Democracia?

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Manuel Arriaga publicou Reinventar a Democracia no Reino Unido em 2014 e em Portugal e na Grécia em 2015 Daniel Rocha
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Manuel Arriaga publicou Reinventar a Democracia no Reino Unido em 2014 e em Portugal e na Grécia em 2015 Daniel Rocha

Licenciou-se em Economia, doutorou-se em Gestão, mas é na área da participação cívica que se tem vindo a destacar internacionalmente. Manuel Arriaga, professor convidado na Universidade de Nova Iorque, é o autor do livro Reinventar a Democracia (Manuscrito), editado no Reino Unido (2014), Portugal e Grécia (2015), no qual aponta caminhos para uma democracia mais participativa como forma de regenerar o próprio sistema. Um dos instrumentos que defende são os Fóruns de Cidadãos. E é isso mesmo que acontece este fim-de-semana em Lisboa, pela primeira vez.

Quase dois anos depois de lançar em Portugal o livro Reinventar a Democracia, o Fórum dos Cidadãos é uma tentativa de pôr em prática a ideia de um parlamento de cidadãos?
É antes de mais uma tentativa de dar a ouvir uma voz diferente do cidadão comum. Uma voz informada e reflectida que nos permite descobrir o que a sociedade civil pensa sobre assuntos importantes da nossa realidade política e social, sem os enviesamentos que são introduzidos pelas formas tradicionais de escutarmos o público, das entrevistas de rua, uma espécie de emboscada mediática em que se dão 15 segundos às pessoas para dizer uns disparates.

A tese do seu livro é que a escassa participação cívica é uma das causas da doença da democracia. No entanto, vemos hoje que há uma saturação tão grande do sistema, dos políticos, que os eleitores acabam por aderir com facilidade a soluções populistas, nacionalistas, anti-sistémicas e que produzem resultados como o "Brexit" ou a eleição de Donald Trump. Não há aqui um paradoxo?
A questão é o método através do qual os cidadãos podem fazer-se ouvir. A situação que descreveu tem a ver com a frustração causada pelos métodos disponíveis, que só lhes permitem fazer uma cruz numa solução alternativa anti-sistémica – um Trump, um "Brexit" -, que surge como a única válvula de escape para o cidadão manifestar que não está satisfeito. Estou seguro de que a situação seria diferente, se houvesse uma alternativa complementar para se fazerem ouvir. Voltamos ao ponto fundamental: métodos diferentes de auscultar os cidadãos vão produzir resultados diferentes. Toda a nossa aposta é no sentido de cultivar opiniões informadas e reflectidas.

Não tiramos isto de um chapéu: há ampla experiência internacional que mostra que, quando os processos deliberativos são bem estruturados e conduzidos, quando disponibilizamos aos cidadãos um conjunto diverso e estruturado de opiniões, quando lhes damos tempo de debaterem entre si com facilitadores experientes, a opinião que emerge é fundamentalmente diferente daquela com que os cidadãos chegaram.

James Fishkin, professor de Ciência Politica e Comunicação da Universidade de Stanford, concluiu ao longo das suas sondagens deliberativas que 70% dos participantes mudam de opinião quando são bem informados e participam nas soluções. É com esta convicção que propomos processos deliberativos desta natureza, porque acreditamos que a voz do público, como a conhecemos e como a receamos depois de 2016, é muito diferente daquela que podemos dar a ouvir. É essa a nossa grande aposta.

Quando o próprio sistema abre janelas de participação e deliberação, como os orçamentos participativos ou os referendos, isso ajuda a regenerar o próprio sistema. Não é este um caminho mais eficaz?
Certamente. Uma das fórmulas poderia ser a criação de um Ministério para a Democracia, que fosse um foco concentrado de experimentação nesta área, porque as experiências que temos são muito ad hoc. Importámos o modelo do orçamento participativo, internacionalmente de enorme êxito, mas as outras iniciativas que vão existindo acontecem apenas porque alguém se recordou de as fazer e não têm consequência…

São coisas diferentes, as que têm origem nos poderes e as que vêm da sociedade civil…
Sim, mas deviam ser co-produzidas. Eu tento evitar essa visão dualista do que vem dos poderes e da sociedade civil. Estas ocasiões são um encontro de vontades com disponibilidades e talvez ajudem a mudar as coisas ao longo do tempo. Eu acho que existe desejo também da parte do poder político de experimentar estas alternativas precisamente para obviar à situação que descreveu. Nós acreditamos muito nesta visão para o fórum que é a de que, se os cidadãos tiverem oportunidade de desenvolver opiniões esclarecidas, não vamos ter estes sustos.

Acha que os meios de comunicação social deixaram de cumprir o seu papel de informar e de ajudar a reflectir?
Vivemos num tempo em que o tempo para essa reflexão parece escassear. Os media reflectem em parte este problema, tal como o processo político. Precisamos de uma forma mais cuidada de processar a nossa dieta informativa. Precisamos de criar um ambiente onde a informação não é recolhida de forma acrítica, onde a informação é pensada, diferentes pontos de vista são considerados e há um debate sério sobre cada tema. Há um risco - para quem tem um martelo, tudo parece um prego. Mas seria interessante termos uma informação crítica sobre os media, através de um painel de cidadãos que analisam cuidadosamente o trabalho dos meios de comunicação social. Talvez descobríssemos que os mesmos cidadãos cujos consumos mediáticos são invocados para justificar coberturas sensacionalísticas são altamente críticos sobre essa mesma cobertura.

Como fazem para que os cidadãos e personalidades convidadas sejam realmente representativas e equilibradas?
Para a credibilidade do processo, é fundamental que a dieta informativa e de opinião fornecida aos cidadãos seja tão equilibrada e diversa quanto possível. No piloto que vamos fazer este fim de semana temos palestrantes de esquerda e de direita. Para os próximos fóruns, reunimos uma rede de apoiantes de todos os quadrantes políticos, desde o Rui Tavares ao Adriano Moreira, e vamos usar estes apoiantes como conselho consultivo para assegurar que os diferentes pontos de vista estão de facto apresentados na dieta informativa a fornecer aos cidadãos. Quanto aos participantes, a preocupação é assegurar a diversidade da população portuguesa, e para isso recolhemos uma amostra que representa essa diversidade num leque de características fundamentais. Neste piloto temos um grupo de 15 pessoas diversas no género, na idade e no grau de educação, de diferentes regiões do país, escolhidas por sorteio com a ajuda de uma empresa de estudos de mercado.

O fórum deste fim de semana não é aberto ao público?
Não, porque quando temos iniciativas abertas, há um forte processo de auto-selecção, aparecem os mais politizados e nem toda a gente tem paciência para fóruns cheios de opiniões aquecidas e entusiastas. Recentemente houve um projecto semelhante organizado pela Marina Costa Lobo com um grupo deste tipo para fazer perguntas ao primeiro-ministro. É este trabalho pioneiro que queremos institucionalizar. Queremos que as pessoas passem vários dias a ouvir opiniões sobre um tema, a reflectir e no final possam deliberar sobre ele, apresentando recomendações em vez de fazer perguntas ao poder político.

Acha que Portugal tem um défice de participação cidadã ou está em linha com países que conhece bem, como o Reino Unido ou os EUA?
A convicção mais forte que tenho sobre isto é que em Portugal existe uma enorme sede de participação e fugindo muito à ideia de apatia, verdadeiramente tóxica, de que o cidadão não se interessa. Existe hoje uma vontade forte, também da parte de algumas instituições, de criar fóruns para que os cidadãos se façam ouvir. Acreditamos muito no modelo que propomos porque tem dado provas internacionalmente.

Vamos trazer cá no dia 17, na sessão de apresentação das conclusões do Fórum, na Reitoria da Universidade Nova, o professor David Farrell, professor da University College Dublin, que tem estado directamente envolvido na Convenção Constitucional Irlandesa. Trata-se de um projecto que ao longo dos últimos três anos, por encomenda do parlamento irlandês, reuniu um conjunto dos cidadãos – dois terços dos quais escolhidos com a nossa metodologia e um terço de políticos indicados pelo parlamento – que passaram recomendações sobre uma variedade de temas, entre os quais o casamento homossexual na Irlanda.

Acredita na democracia directa ou apenas nesta democracia mais participativa, em que os partidos continuam a ser os orientadores das opções políticas?
Eu acredito na diversidade e multiplicidade de métodos para o público se fazer ouvir. Acredito particularmente nos fóruns de cidadãos, no debate em grupo perante uma opinião reflectida.

Quem são vocês?
Somos um conjunto de académicos de diferentes instituições – há investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência e do Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, que são as instituições que nos apoiam. Somos em parte um projecto académico e em parte um movimento da sociedade civil, temos esta identidade híbrida que esperamos que nos venha a permitir sermos ouvidos pelo meio académico, pelo meio político, e temos esperança também, pelos media. E esperamos vir a contar com parcerias com, por exemplo, câmaras municipais.

O tema deste primeiro debate é “Como fazer-nos ouvir”. Como pensa o Fórum fazer, depois, ouvir as suas conclusões?
Através da criação activa de elos, tanto com o meio político como com o meio mediático. As recomendações finais deste primeiro Fórum vão ser apresentadas publicamente numa cerimónia e depois entregues a diferentes instituições políticas. Estamos, por exemplo, a agendar uma audiência com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. E um dos participantes do Fórum é deputado, membro do grupo de trabalho para o Parlamento Digital e já aí está criada uma ponte institucional para que as conclusões não caiam no vazio, porque estamos muito focados na manutenção desta plataforma no tempo.

Quais os temas que vêm a seguir?
A representação, o funcionamento do sistema político, formas alternativas para o público se fazer ouvir são os temas onde estamos mais focados este ano. Esperamos ao longo de 2017, em parceria com câmaras municipais e mais focados em assuntos locais, divulgarmos mais este modelo e testarmos também a nossa forma de participação.

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