Ricardo Pais: “A sede de ópera é imensa”

O encenador volta ao São Carlos passados 25 anos na primeira nova produção desta temporada.

Fotogaleria

Já se fizeram as maiores loucuras com a ópera Oedipus Rex, de Igor Stravinsky, mas o encenador Ricardo Pais descreve como “sóbrio” e “tímido” o seu trabalho para a nova produção do Teatro Nacional de São Carlos, a primeira desta temporada, que quinta-feira tem estreia mundial em Lisboa.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Já se fizeram as maiores loucuras com a ópera Oedipus Rex, de Igor Stravinsky, mas o encenador Ricardo Pais descreve como “sóbrio” e “tímido” o seu trabalho para a nova produção do Teatro Nacional de São Carlos, a primeira desta temporada, que quinta-feira tem estreia mundial em Lisboa.

Oedipus Rex é uma ópera-oratório – a representação de uma história religiosa ou mitológica em que a acção é quase estática – com apenas uma hora de duração. Como dizia Stravinsky, a tragédia de Sófocles é a história perfeita para transformar em música, porque ninguém precisa de se concentrar no que se conta e pode dar prioridade ao que se ouve. Com libreto de Jean Cocteau, este Édipo com quem todos vivemos depois de Freud é cantado em latim e geralmente narrado na língua do país em que a ópera é produzida.

“Deu-se um peso completamente diferente ao personagem do narrador na vivência da história. Deve ser uma pessoa que partilha o segredo, a desconfiança, a crítica e a compaixão”, explica Ricardo Pais, que encena aqui a sua terceira ópera. O narrador, interpretado por João Merino, é trazido para o meio do palco, abandonando a sua posição lateral de preencher apenas os buracos desta história de parricídio e incesto. “É um gesto dramatúrgico forte”, reconhece Pais, porque precisava de encontrar um motor numa história quase sem acção, “de criar uma tensão paralela, um percurso de mistério”. Este encenador gosta de contar histórias.

Ao mesmo tempo que traz o narrador para o meio da cena, com a sua voz ampliada que nunca está acompanhada por música, Ricardo Pais acumula em João Merino a personagem do mensageiro. “Há a passagem da palavra falada à palavra cantada no mesmo corpo.”

Do elenco, o encenador destaca o tenor austríaco Nikolai Schukoff, “de uma generosidade sem limites na sua experiência de palco”, que já tinha sido apontado por Patrick Dickie, o director artístico do São Carlos na apresentação da temporada lírica. O papel de Jocasta, a mãe de Édipo, cabe a Cátia Moreso, uma cantora portuguesa que lhe foi indicada pela maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Joana Carneiro, o primeiro nome que esteve apontado para a direcção musical agora assegurada por Leo Hussain. Também portugueses são Davone Tines, que canta os papéis de Creón e Tirésias, enquanto Marco Alves dos Santos faz de Pastor. Em palco estão ainda os 36 cantores do Coro masculino do São Carlos. O resto da equipa criativa também é portuguesa, com António Lagarto a assinar a cenografia e os figurinos e Rui Pedro Simão o desenho de luz.

As trevas e a luz

As três récitas de Oedipus Rex – além da estreia, haverá apresentações esta sexta-feira e no domingo – estão quase esgotadas, o que já tinha acontecido na primeira ópera desta temporada, a Carmen encenada pelo espanhol Calixto Bieito, também estreada no São Carlos. “A sede de ópera é imensa”, comenta Ricardo Pais sobre o facto destas duas produções do único teatro de ópera em Portugal terem mostrado muita procura. A encenação de Pais é a única assinada por um português numa temporada com sete óperas.

Ricardo Pais regressa agora ao São Carlos, 25 após ali ter encenado Amor de Perdição, de António Emiliano (1991). Uma década depois, no ano em que o Porto foi Capital Europeia da Cultura, encenou The Turn of the Screw, de Britten. A ópera, no entanto, não é uma coisa de que tenha muitas saudades, embora esteja muito satisfeito com o resultado desta encenação: Amor de Perdição não foi uma boa experiência.

Este Édipo, o de Stravinsky e de Cocteau, acaba por ser uma espécie de celebração, e ao encenador interessa-lhe mais o que ouve na obra: “Porque o tom musical é celebratório e foi assumido como tal. É um jogo claro entre as trevas e a luz. Um jogo estranho sobre o que pode martirizar a nossa consciência e o que a pode cegar, porque é o que a liberta. É sobre um processo de purificação, e voltamos à compaixão.” E se formos por Freud dentro, adianta, “então nunca mais acaba, porque Édipo acabou por se constituir como um complexo, com muita especulação filosófica e psicanalítica" – "e todos vivemos com um Édipo”.

A ópera começa e acaba com um carrinho de bebé em cena, empurrado pelo mensageiro – o único adereço presente em palco além da arquitectura desenhada por António Lagarto. É uma referência a outro Édipo que todos temos na cabeça, o filme de Pier Paolo Pasolini feito em 1967, em que Silvana Mangano atravessa a paisagem empurrando um carrinho de bebé.

Este Édipo Rei regressa a Lisboa 34 anos após a última encenação da ópera no São Carlos (em 2006, o teatro retomou-a mas em versão concerto). No comunicado de imprensa sobre a ópera que o compositor russo estreou em 1927 em Paris, Patrick Dickie escreve que esta encenação acrescenta “imagens indeléveis” e é “um divertimento circunspecto que tanto respeita como subverte Stravinsky”.