Arqueologia de primatas? Sim, e valeu a Susana Carvalho um prémio britânico

Portuguesa esteve na raiz de uma nova subdisciplina académica. “É um orgulho ver o risco de tentar coisas novas recompensado.”

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A investigadora portuguesa Susana Carvalho – que combinou de forma pioneira a arqueologia e a primatologia, investigando o uso de ferramentas de pedra pelos chimpanzés (por exemplo para partir nozes) e pelos nossos próprios antepassados –, acaba de ganhar um prémio britânico no valor de 100 mil libras esterlinas (112 mil euros).

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A investigadora portuguesa Susana Carvalho – que combinou de forma pioneira a arqueologia e a primatologia, investigando o uso de ferramentas de pedra pelos chimpanzés (por exemplo para partir nozes) e pelos nossos próprios antepassados –, acaba de ganhar um prémio britânico no valor de 100 mil libras esterlinas (112 mil euros).

Susana Carvalho, de 42 anos, é investigadora e professora no Instituto de Antropologia Cognitiva e Evolutiva da Universidade de Oxford, no Reino Unido. O Prémio Philip Leverhulme (que este ano deu 30 distinções, nas áreas da química, economia, engenharia, geografia e línguas e literatura) premeia “cientistas excepcionais cujo trabalho já teve reconhecimento internacional e a carreira é excepcionalmente promissora”. “Susana Carvalho está na fundação de uma nova subdisciplina académica: a arqueologia de primatas”, anunciou o Instituto de Antropologia Cognitiva e Evolutiva em comunicado na terça-feira.

“Os seus estudos revelaram pela primeira vez que os padrões de comportamento e os contextos de ferramentas líticas gerados por chimpanzés modernos podem ser comparados com aqueles que são recuperados do passado, tanto para grandes símios como humanos”, acrescenta ainda o comunicado. “A investigação de Susana procurou responder a algumas das questões mais difíceis na área da arqueologia: quão antiga é a tecnologia dos hominíneos? Que construtores de ferramentas podemos associar às primeiras indústrias líticas?”, refere-se. “Quando e como emergiram comportamentos relacionados com a tecnologia (como o seu transporte e selecção)?”

Os trabalhos pioneiros de Susana Carvalho remontam à altura em que ainda era estudante de mestrado: em 2008 publicava um artigo científico em que demonstrava que um conceito arqueológico clássico – denominado “cadeia operatória” – podia ser aplicado à tecnologia rudimentar dos grandes símios, mais exactamente às ferramentas de pedra que os chimpanzés utilizam. A arqueologia começava a cruzar-se com a primatologia, o que era um olhar totalmente novo.

“Fiz o primeiro estudo que combinou métodos de arqueologia e observação de comportamento de primatas. Nesse sentido, a raiz da arqueologia de primatas coincide com a minha carreira académica”, recorda agora Susana Carvalho. “Mas há outros que trabalharam e trabalham na área quase ao mesmo tempo do que eu, seguindo o meu estudo de 2008”, ressalva.

Para testar este cruzamento entre disciplinas, Susana Carvalho embrenhou-se em observações dos chimpanzés de Bossou, uma aldeia na Guiné-Conacri onde existe há décadas uma estação de investigação de primatas. O que eles têm de extraordinário é que usam pedras para partir nozes. Mais: com essas pedras “constroem” ferramentas, na medida em que umas servem de martelos, outras de bigornas e outras ainda de calços.

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Chimpanzé a partir nozes com uma pedra que serve de martelo e outra de bigorna DR

E o que Susana Carvalho queria então verificar no terreno em Bossou e numa floresta tropical remota da Guiné-Conacri, como já em 2006 explicava ao PÚBLICO, é que os chimpanzés não se limitavam a usar uma pedra que estivesse à mão de semear como ferramenta para partir uma noz e, depois, tirar lá de dentro o miolo calórico. O que, só por si, já era singular. Os chimpanzés procuram as melhores matérias-primas para fabricar ferramentas, que depois transportam, utilizam, abandonam e tornam a usar — ou seja, teriam uma cadeia operatória para construir e usar utensílios, tal como os hominíneos (os nossos antepassados depois da separação do ramo dos chimpanzés, há cerca de oito milhões de anos) também tiveram as suas indústrias líticas.

Mais recentemente, já como investigadora de pós-doutoramento, sublinha o comunicado, aplicou técnicas pioneiras de sistemas de informação geográfica (SIG) ao estudo das superfícies de ferramentas de pedra com que os chimpanzés partem as nozes. Pela primeira vez, fazia-se uma análise digital da superfície dessas pedras, como também explicava ao PÚBLICO no ano passado, quando publicou os resultados desta investigação. Desta forma, pôde construir mapas de desgaste da superfície das pedras e deduzir como tinham sido usadas. E, assim, também se podem estudar ferramentas humanas (e não só) muito antigas. Afinal, já se descobriram as primeiras ferramentas pré-humanas, no Quénia: têm 3,3 milhões de anos, anunciou-se no ano passado. Por isso, só podem ter sido fabricadas antes do aparecimento dos primeiros humanos – ou seja, cerca de 400 mil anos antes dos primeiros membros conhecidos do género Homo.

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A estação de investigação de primatas em Bossou, Guiné-Conacri DR

Fugir da ciência fast food

“O prémio representa um reconhecimento internacional do meu trabalho, e de algumas das ideias-chave que guiam a minha investigação: esticar os limites da ciência através da criação de novas abordagens e de novos métodos”, diz Susana Carvalho, que neste momento já está a começar a aplicar este cruzamento entre a primatologia e a arqueologia ao Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique. E onde também tenciona criar uma Escola de Campo Internacional nessas áreas para formar estudantes portugueses, moçambicanos e do resto do mundo.

A marca que gostaria de deixar é esta: “Inovação, interdisciplinaridade e excelente formação para estudantes, tanto no laboratório como no campo, para que possam aprender a pensar e concretizar ciência sólida, tentando fugir desta vaga de ciência fast food, que infelizmente está a tomar conta da academia em geral”, diz. “É um orgulho para mim ver a minha filosofia de trabalho reconhecida e o risco de tentar coisas novas recompensado.”

Em relação à Gorongosa, a ideia é ajudar a colocá-la no mapa da evolução e, mais particularmente, no mapa da evolução humana. A Gorongosa está no extremo Sul do Grande Vale do Rift Africano, um vale de onde têm saído tantos achados sobre evolução humana, ou não fosse um dos berços da humanidade. “A Gorongosa é quase a única área do vale que ainda não foi estudada em termos de evolução humana”, dizia no ano passado. “Peças muito importantes do puzzle da evolução estão à espera de serem encontradas neste lugar fantástico.”

Com o valor do Prémio Philip Leverhulme, a investigadora vai agora criar um laboratório de investigação na Universidade de Oxford e continuar as suas viagens de campo – à Guiné-Conacri (para estudar o transporte de ferramentas pelos chimpanzés), ao sítio de Koobi Fora, no Quénia (para escavações arqueológicas em depósitos do Plioceno), e ao Parque Nacional da Gorongosa (para prospecções arqueológicas e paleoantropológicas).

“Agora vou poder criar o Laboratório de Modelos de Primatas, onde nos vamos dedicar desde a análise de ferramentas arqueológicas e o estudo de vídeos de chimpanzés e outros primatas até ao estudo de fósseis de fauna e hominíneos. No fundo, ao estudo da evolução humana através de uma análise comparativa com os primatas não humanos”, avança.

Tudo isto porque continuamos em busca de nós próprios, olhando tanto para os chimpanzés de hoje como para os nossos antepassados humanos e pré-humanos.