Portuguesa andou à procura dos chimpanzés que partem nozes na floresta de Diecké

Aventuras em selva da Guiné-Conacri resultaram na identificação de novos locais onde os parentes mais próximos dos humanos usam ferramentas para se alimentar

Susana Carvalho esteve no fim do mundo - como ela diz -, na floresta protegida de Diecké, à procura dos chimpanzés esquivos da Guiné-Conacri, que gostam de partir nozes de casca muito dura.É uma selva imensa, muito densa, de 60 mil hectares. "No coração de Diecké, uma floresta tropical primária, com grande taxa de humidade, ouvem-se todos os tipos de sons de aves e mamíferos. Há muito barulho sempre, dia e noite. Uma pessoa sente-se muito pequena e viva."
Proliferam os cursos de água, os pântanos... "Está cheia de lianas por todo o lado, com árvores gigantescas com as copas muito serradas. Há muita sombra. O sol nunca entra. É uma sensação de estar no fim do mundo."
Só à catanada é que os guias de Susana Carvalho, de 32 anos, conseguiam progredir na floresta, à procura dos chimpanzés que nunca nenhum investigador tinha avistado. "É preciso usar a catana para passar os rios. Uma vez caminhámos mais de uma hora e meia para subir um rio com água pela cintura. São sítios onde há hipopótamos, crocodilos..."
Foi para aquele país da África ocidental a 4 de Janeiro, voltou a Portugal a 15 de Maio, com a mala a transbordar de aventuras, sensações únicas, milhentas fotografias, mas também dois episódios de malária, um em plena floresta, e um pé com mordidelas infectadas.

Cinco novos locais com ferramentas
Teve sorte. Com a água pela cintura, não deu de caras com nenhum crocodilo. Teve azar. Não viu nenhum chimpanzé. Mas tanta adrenalina teve uma compensação. A arqueóloga e antropóloga da Universidade de Coimbra, a fazer uma tese de mestrado, identificou cinco novos locais onde os parentes mais próximos dos humanos partem nozes de duas espécies de palmeiras, a Panda oleosa e a Coula edulis. Servem-se de bigornas (afloramentos graníticos planos) e martelos de pedra.
Até agora, conhecia-se ali só um desses sítios, descoberto em 1999 por Tetsuro Matsuzawa, um dos orientadores de mestrado de Susana Carvalho, que é do Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto, no Japão. "É a cerca de quatro horas de caminho da aldeia de Nonah, e a espécie de noz quebrada é a Panda oleosa, a mais dura entre as partidas pelos chimpanzés. Eu mesma tentei parti-la e pude verificar que é muito dura para comer."
Também encontrou outros vestígios dos chimpanzés. Arbustos comidos, ninhos de folhas para dormir no chão e trilhos de passagem. "Julgo que vai ser preciso bastante tempo para que os chimpanzés não fujam assim que se apercebem da presença humana."
Não se sabe, por isso, quantos vivem ali. "É preciso fazer um censos, contar os ninhos, mas julgo que ainda existem vários grupos."

Caça numa área protegida
Mas se os (poucos) cientistas que estiveram na floresta de Diecké nunca avistaram sequer os chimpanzés, o mesmo não pode dizer-se de outros humanos. "Durante a noite, quando acampávamos, ouvíamos tiros. É uma floresta protegida pelo Governo e internacionalmente, mas na prática não é nada disso. A caça existe."
O destino dos chimpanzés caçados é o prato de alguém. Nem todas as etnias da Guiné comem chimpanzés. Os manon, por exemplo, consideram-nos sagrados. Numa das suas aldeias, Bossou, a festa anual, a 19 de Fevereiro, é em honra do Monte Gban, o monte sagrado dos chimpanzés, e é venerado um crânio. Para os manons, os chimpanzés são os seus antepassados.
No entanto, numa aldeia perto de Diecké, a etnia guerzé não tem o chimpanzé como totem. "Para qualquer guerzé matar ou comer chimpanzés não é grave. Embora tenham noção da grande semelhança entre nós e os chimpanzés, a fome é muita. O tráfico de carne de espécies protegidas é muito alto. Também há caçadores que vendem para sítios que desconhecemos."

Entrar na selvaexige ritual
Nas duas vezes em que se aventurou bem no interior da floresta, em Março e em Abril, era a única cientista. Os outros membros da expedição eram os guias, os carregadores e o chefe da aldeia, com os quais comunicava em francês. De cada vez, acamparam durante uma semana, em sítios diferentes. Ficavam a cerca de cinco horas da aldeia mais próxima e não havia rádio que funcionasse. Era do acampamento que, depois, se embrenhavam ainda mais no coração da floresta. "Ninguém nos podia vir buscar. Queríamos estar bem de saúde. Tive medo, mas a vontade de fazer o trabalho superava o medo."
Antes, no final de Janeiro, estreou-se na floresta com outra investigadora portuguesa, a antropóloga Cláudia Sousa, da Universidade Nova de Lisboa, também sua orientadora de mestrado. Por dois dias, entraram e saíram da floresta - visitaram o único sítio conhecido onde os chimpanzés partiam nozes -, e dormiram na aldeia de Nonah.
"Fomos ver como era o terreno e procurar informações nas aldeias em torno de Diecké", conta. "Entrámos na floresta cerca de 20 quilómetros e voltámos no mesmo dia, por isso era extremamente duro e deu para ver que era preciso mesmo acampar, quando voltasse sozinha. Para a Cláudia, também foi uma estreia em Diecké."
Depois de Cláudia Sousa regressar a Portugal, ficou por sua conta nas expedições seguintes. Não se entra na floresta sem mais nem menos. Na aldeia de Korohouan, de etnia manon, de onde partiu a segunda expedição, cumpre-se um ritual. "Apresentamo-nos, oferecem-se nozes Coula, que são quase sagradas, com algum dinheiro simbólico. Bebe-se um vinho branco de palma, chamado Yopro, em manon, e tenta-se negociar com o chefe da aldeia a possibilidade de ter guias, carregadores e ser permitida a entrada na floresta."
Entram na floresta tranquilamente. "Os guias são extremamente calmos. Apesar da grande adrenalina da aventura, há uma grande paz e harmonia em toda a gente."
Numa das vezes, levaram um homem de 70 anos, Onoré Mamy, porque naquela aldeia acreditam que as pessoas se transformam em animais e protegem as pessoas. "Ele era a pessoa da aldeia que se transformava em chimpanzé. Teve de fazer parte da equipa. Nunca o vi transformar-se..."

Comer com diferenças regionaisApesar não ter visto qualquer chimpanzé, o objectivo da aventura na floresta cumpriu-se, que era encontrar locais onde quebram nozes recorrendo a ferramentas e, ainda, conhecer os problemas de conservação. Nos seis sítios, Susana Carvalho numerou as pedras usadas como ferramentas e desenhou a posição original de todas - e, quando regressou lá, viu que num dos locais tinham voltado a servir os chimpanzés.
Agora vai ser possível estudar as diferenças regionais na forma de partir nozes dos chimpanzés da Guiné-Conacri, em particular entre os de Diecké e os da floresta de Bossou, onde fica um dos seis centros de investigação de longa duração de chimpanzés em África, gerido pelo Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto. Não partem as mesmas nozes (os de Diecké preferem as duras, apesar de haver ali uma espécie encontrada em Bossou, a Elaeis guineensis), nem usam as mesmas ferramentas (os martelos são maiores).
Para o ano, entre Janeiro e Março, na época seca, Susana Carvalho gostaria de ir de novo em busca dos chimpanzés que tanto se deleitam com as nozes duras.

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