Têm fábricas de ferramentas, que também servem de refeitório

A arqueologia está a cruzar-se com a primatologia, e este olhar pode trazer resultados inéditos sobre os chimpanzés, que são deliciosamente parecidos connosco

Não se limitam a usar uma pedra que esteja à mão como ferramenta para partir uma noz e tirar lá de dentro o miolo calórico. Ou a rapar as folhas de um galho, para fazer um apanhador de formigas, o que já é extraordinário. Os chimpanzés procuram as melhores matérias-primas para fabricar ferramentas, que depois transportam, utilizam e abandonam - ou seja, parecem ter uma cadeia operatória para construir e usar utensílios, como os hominídeos tiveram as suas indústrias líticas.Trocando por miúdos este conceito arqueológico, parece que têm fábricas de ferramentas, que também servem de refeitório. Costumam deixá-las ao pé de palmeiras, como se ficassem na gaveta dos talheres, à espera da próxima refeição. A confirmar-se, este é o passo em frente que o trabalho de Susana Carvalho deverá dar na compreensão dos nossos primos mais directos, no âmbito da sua tese de mestrado, orientada pela antropóloga Eugénia Cunha (Universidade de Coimbra), a primatóloga Cláudia Sousa (Universidade Nova de Lisboa) e pelo primatólogo Tetsuro Matsuzawa (Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto).
Falta-lhe, é certo, analisar muitas cassetes filmadas com os chimpanzés de Bossou, na Guiné-Conacri, e os dados das observações que fez quando usavam martelos e bigornas para partir nozes. Aplicou a abordagem arqueológica para estudar o local onde os viu a quebrar as nozes, um laboratório ao ar livre, numerando 57 ferramentas e desenhando a sua localização. Peças e nozes foram oferta dos humanos.
Aplicando o mesmo método, visitava outros 11 locais em Bossou, junto a palmeiras, onde os chimpanzés iam partir nozes. Na sua ausência, olhava para os vestígios, como se fosse um sítio arqueológico, e tentava perceber o que se tinha passado.
Ao mesmo tempo, Cláudia Sousa, pela sexta vez na estação de Bossou, gravou as vocalizações dos chimpanzés, para estudos sobre o que tentam comunicar. "Sabemos que identificam outros indivíduos pelo tom da voz, como nós", diz a primatóloga. Continuou ainda a recolher dados sobre as esponjas que fazem com folhas para beber água - "e a ver a transmissão desse conhecimento ao longo de gerações".
Para já, as observações de Susana Carvalho sugerem que têm uma cadeia operatória. Escolhem a matéria-prima para as ferramentas (preferem granito e quartzo). Sabem destrinçar entre as que têm boa e má forma, por isso nalgumas nunca pegaram sequer. "Quando um martelo é realmente bom, fazem grandes distâncias com ele para ir partir nozes noutro sítio." Também trazem peças novas, como calços, para firmar as bigornas. E, quando alguma peça se fractura, abandonam-na.
"Não é aleatório o uso de uma pedra para partir uma noz. Há uma intencionalidade e reconhecem perfeitamente a função de uma ferramenta", diz. "Em termos cognitivos, é preciso ter grande capacidade de antecipação mental de tarefas para o conseguirem. A existência de uma possível cadeia operatória mostra que a capacidade cognitiva dos chimpanzés é muito complexa e talvez seja superior ao que a comunidade científica pensava."
Em 2002, Julio Mercader (Universidade George Washington, nos EUA) relatou na revista Science a primeira escavação num local onde os chimpanzés partiam nozes, na floresta de Taï (Costa do Marfim). Só que já não o usavam. O trabalho de Susana Carvalho é primeira abordagem arqueológica a um sítio em uso.
Cruzar estas disciplinas pode trazer um olhar novo sobre a evolução humana e a dos chimpanzés e a cultura material de ambos. Chimpanzés e humanos de Bossou comem as mesmas nozes; partem-nas, aliás, com os mesmos materiais. "Pode falar-se de uma relação entre a evolução das culturas materiais e a evolução biológica humana?" Talvez não, talvez as fábricas e os refeitórios dos chimpanzés dêem uma pista. T.F.

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