E as curtas, senhores?

As quatro curtas nacionais a concurso em Locarno são, por onde se quiser ver, um bom espelho daquilo que é a produção portuguesa do formato.

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O cinema que se faz em Portugal tem neste momento uma visibilidade internacional fortemente desproporcionada em relação ao volume da produção e ao seu peso comercial global? Tem, sim senhor. E tem-no não apenas devido à presença regular nos festivais de primeira categoria de realizadores portugueses. Tem-no, também, graças a uma presença regular nas competições de curtas-metragens, que viram João Salaviza ou Leonor Teles receberem em anos recentes os prémios máximos de Cannes ou Berlim, e à atenção que esse formato, ainda encarado inevitavelmente como “menor”, merece junto de programadores, críticos e produtores.

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O cinema que se faz em Portugal tem neste momento uma visibilidade internacional fortemente desproporcionada em relação ao volume da produção e ao seu peso comercial global? Tem, sim senhor. E tem-no não apenas devido à presença regular nos festivais de primeira categoria de realizadores portugueses. Tem-no, também, graças a uma presença regular nas competições de curtas-metragens, que viram João Salaviza ou Leonor Teles receberem em anos recentes os prémios máximos de Cannes ou Berlim, e à atenção que esse formato, ainda encarado inevitavelmente como “menor”, merece junto de programadores, críticos e produtores.

É por isso inevitável olharmos para a presença de quatro filmes portugueses no concurso oficial de curtas de Locarno, Pardi di Domani, à luz deste interesse global, sobretudo quando integrados numa “embaixada” inaudita em termos de quantidade. Mas, veja-se por onde se quiser ver, são filmes que reflectem de modo bastante acertado o cinema que se produz hoje entre nós: tanto mais estimulantes quanto mais próximos do objecto singular e inclassificável, tanto menos interessantes quanto mais próximos da formatação narrativa à medida de um objectivo.

Expliquemo-nos: as duas ficções, À Noite Fazem-se Amigos, de Rita Barbosa (passa esta quinta-feira, dia 4, com repetições a 5 e 6) e Setembro, de Leonor Noivo (dias 6, 7 e 8), que tiveram estreia no Curtas Vila do Conde, são tecnicamente correctíssimas mas mostram-se encerradas na gaveta armadilhada do “filme de festival”. As suas narrativas difusas e existencialistas não conseguem sustentar durações mais próximas da média-metragem (25 minutos para o filme de Rita Barbosa, 40 para o de Leonor Noivo). Não chega À Noite Fazem-se Amigos estar extraordinariamente bem filmado (fotografia de Paulo Menezes, som de Miguel Martins), nem a Setembro comprovar que Leonor Noivo tem um olhar atento sobre as personagens que filma; ambos os filmes parecem incapazes de saber o que querem ou explicar ao que vêm. Na sinopse do filme de Rita Barbosa lê-se: “Ficamos sem saber como tudo termina, ficamos mesmo sem saber se aquilo alguma vez havia começado.” É isto, sem tirar nem pôr, agravado por serem objectos que correspondem na perfeição à ideia redutora que a maior parte das pessoas faz do que é o “cinema português” ou, mais latamente, o “cinema de autor”.

Para provar exactamente o oposto, aí temos Joana Pimenta e José Miguel Ribeiro, cujos filmes têm personalidades muito próprias e cujas vozes autorais não correspondem forçosamente a expectativas. Joana Pimenta é professora em Harvard e afiliada do Laboratório de Etnografia Sensorial de Harvard (o instituto que tem forçado as fronteiras da não-ficção com títulos como Leviathan, de Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor). O seu Um Campo de Aviação, a única curta portuguesa a ter estreia mundial em Locarno (dias 7, 8 e 9), é um filme abertamente experimental inspirado em parte por textos de Clarice Lispector, cruzando imagens vulcânicas da Ilha do Fogo, citações visuais de Brasília e maquetas arquitectónicas num todo que só fará sentido nos momentos finais, com uma “pirueta” de narração que literalmente “reconfigura” o filme e ganha o que até aí corria o risco de se perder no gratuito.

José Miguel Ribeiro é talvez o nome mais prestigiado da animação portuguesa, com títulos premiados em todo o mundo como A Suspeita (1999), Passeio de Domingo (2009) e Viagem a Cabo Verde (2010). Com Estilhaços, estreado na Monstra e exibido em Locarno dias 10, 11 e 12, Ribeiro utiliza as possibilidades da animação para ir ao cerne de uma história de violência passada de pai para filho, da Guerra Colonial aos nossos dias. É pena que a narrativa seja um pouco demonstrativa e pontualmente patuda, porque a excelência da animação (cruzando diferentes métodos e incrustando imagem real) dispensa quaisquer redundâncias: Estilhaços é um pequeno prodígio técnico que comprova o eclectismo formal e criativo de José Miguel Ribeiro, e, a par de Um Campo de Aviação, confirma como são a diferença e a personalidade que fazem a mais-valia da produção que vamos tendo. Assim os júris de Locarno a saibam ver.