A sabedoria dos velhos

Dois breves e intensos livros que se complementam numa veemente crítica anglo-saxónica à consagração do trabalho e do utilitarismo. Foram publicados no século XIX.

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Em A Vida Sem Princípios Thoreau lamenta, educadamente, o entusiasmo selvagem que tomou de assalto os americanos
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Em Apologia do Ócio Stevenson começa por ressalvar que não é um inimigo do trabalho, mas quer dizer algo contra

A Vida sem Princípios (1863) e Apologia do Ócio (1877), dois grandes livrinhos, têm o selo da Antígona. Mas o que explica a sua reunião neste texto é a crítica, que partilham, ao culto do trabalho e ao triunfo da doutrina utilitarista. O americano Henry David Thoreau e o britânico Robert Louis Stevenson, os seus autores, depararam-se com a rápida industrialização dos seus países e com a expansão do capitalismo. Observaram os seus efeitos na relação entre os homens, dos homens com a natureza, no quotidiano, na política. E deles deram testemunho nestes ensaios, exortando os leitores a libertarem-se do implacável feitiço da labuta diária.

Baseado numa conferência, A Vida Sem Princípios lamenta, educadamente, o entusiasmo selvagem que tomou de assalto os americanos. É, ressalve-se, das ruas, das paisagens, dos homens do seu país que Thoreau quer falar, não daquilo que se encontra a milhares de quilómetros de distância. Inquietam-no os novos contornos da sociedade. O barulho das máquinas agita-o (“Sou acordado quase todas as noites pelo arquejar da locomotiva. Isso interrompe os meus sonhos (…)”; o culto do cálculo exaspera-o ( Já não é fácil comprar um caderno liso para escrever as minhas reflexões: agora são quase todos pautados para inscrever os dólares e os cêntimos”). Perturbado, não se conforma com a mera condição de espectador. Considera a labuta incessante dos homens contrária à poesia e à filosofia e rejeita as ordens da “polícia do trabalho absurdo”. Assume o espírito como a sua escola, a sua formação, revolta-se com a ideia de que passear nos bosques possa ser considerada uma actividade menos humana do que cortá-los. Não retira dignidade ao trabalho, mas entende que não deve ser conduzido pelo dinheiro ou pela fama. Declara que o seu verdadeiro fim é ser bem feito, espelhando o amor ao ofício escolhido. Cada homem deve procurar fazer as coisas como sabe e da melhor maneira, para que a sua actividade não se transforme numa necessidade. Caso contrário, a vida será, também ela, um objecto de consumo. Thoreau reconhece as dificuldades da tarefa. Por ignorância, a grande maioria dos homens não consegue ganhar a vida a amar aquilo que faz e ilustra essa desgraçada imperfeição com a Corrida ao Ouro nos Estados Unidos, uma lotaria que, degradante e brutal, atira os aventureiros à sua sorte, transformando-os em demónios ou em loucos. Não é o ouro que a Humanidade devia procurar, mas, ressalva, o discernimento: “Um grão de ouro é capaz de dourar uma grande superfície, mas não tanto quanto um grão de sabedoria” (pág. 33).

A ausência de sabedoria cresce com a hipocrisia e a frivolidade (“Como a maioria das nossas conversas habituais é oca e ineficaz”, pág. 45). Crítico da imprensa de massas, Thoreau considera que as notícias geram mera tagarelice, que a necessidade que delas sentimos, acompanha, quando não acelera, o declínio da nossa vida interior. “Eu diria que ler um jornal por semana já é demais. Tentei-o recentemente, mas depois fiquei com a ideia de que há muito não vivia a minha terra”. Jornalistas, entusiastas das redes sociais, leitores e espectadores tenderão a depreciar esta perspectiva, relegando-a para o contexto em que Thoreau viveu e escreveu. Ora essa atitude será, porventura, precipitada. O escritor “limita-se” a desvalorizar os rumores insignificantes dos jornais, as conversas em torno de notícias de lugares distantes, as discussões confusas e impotentes “que só uma mente divina poderia elucidar”. Não tendo essa mente, prefere afastar-se, preservar o santuário dos pensamentos, contra as coisas triviais. E quando profana esse santuário (afinal também lê jornais), regressa à circunspecção e à devoção, condições que reconsagram o espírito.

O autor de Walden ou A Vida nos Bosques (1854) receava um suicídio intelectual na América. Aos seus olhos, a preocupação com a liberdade surgia superficial, ao contrário da dedicação exclusiva ao negócio, ao comércio, à indústria, à agricultura. É uma realidade que deplora quase desesperado, quando roga aos seus conterrâneos que que não cedam à insatisfação e à ganância: “A América a querer ir buscar ao Velho Mundo os produtos para fazer os seus aperitivos! Não serão a salmoura do mar e o naufrágio suficientemente amargos para esvaziarmos a taça da vida? No entanto, é isso que é, em grande medida, o nosso decantado comércio” (pag.59).

Robert Louis Stevenson, escocês de nascimento, viveu nos Estados Unidos e, 14 anos depois de A Vida sem Princípios, divulgaria ideias próximas das de Thoreau. Em Apologia do Ócio começa por ressalvar que não é um inimigo do trabalho, quer dizer apenas algo contra. A utilidade da escola, da literatura, da ciência não estão em causa mas, avisa, não devem ser substitutos da vida. Lembra ao leitor que existe um mundo para lá dessas esferas, na mera contemplação, no simples acto de tocar violino, na conversa com outros. “Existe certamente algum conhecimento árido e gélido nos cumes das laboriosas ciências formais”, admite, “mas é à nossa volta, caso queiramos procurar, que encontraremos os cálidos e pulsantes factos da vida”. Àquele que foge ao trabalho transformado em prisão, Stevenson chama “gazeteiro”: homem que sabe ser ocioso e, em simultâneo, sensato. O fanatismo, a violência da turba ou pressão da maioria são-lhe alheios, ou não fosse um espírito livre. É alguém que contempla a vida e recusa vitalidade excessiva, sintoma de uma vitalidade deficiente: torna as pessoas as pessoas apáticas, indiferentes, esvaziadas. “Não creio que isto se possa chamar êxito na Vida”, conclui. Para o criador do Capitão Flint, não é certo que o trabalho seja a coisa mais importante. O convívio, a boa companhia dos outros, a presença reconfortante dos amigos podem ser actividades mais virtuosas e sábias. E se uma pessoa não consegue ser feliz sem ser ociosa, então deve permanecer ociosa.

Esta edição inclui o ensaio A Conversa e os Conversadores (1882) que aprofunda a importância do convívio humano. Stevenson não está apenas interessado numa certa performatividade que é inerente ao discurso. Está convencido de que é na conversa que podemos conhecer o período em que vivemos e a nós próprios. “O primeiro dever de um homem é falar; essa é a sua principal obrigação neste mundo” (pág. 39). Mas a boa conversa não ocorre de forma espontânea. Os temperamentos precisam de ser harmonizados, a companhia e a ocasião devem ser propícios. A conversa “deve manter-se junto das linhas da humanidade, sempre perto das almas e dos negócios dos homens, ao nível em que a história, ficção e experiencia se iluminam mutuamente” (pág. 44). Só então, os homens se poderão revelar e a sensação será recompensadora. Desengane-se quem espera dela conclusões, “o proveito reside no exercício e acima de tudo na experiência”, sem prejuízo da sombra de consenso, para que a conversa não se torne uma tortura.

O autor apresenta-nos, depois, vários tipos de conversadores, cada um encarnando estilos e qualidades distintas (energia, sinceridade, inteligência, lucidez, humor, imparcialidade, erudição). São personagens em que nos reconhecemos e reconhecemos os outros, mas os diálogos que elas animam, com os seus tons e ritmos, parecem hoje improváveis ou, pelo menos, raros. E não apenas porque a esfera pública em que intervinham sofreu alterações profundas. Stevenson cultiva um tipo ideal de conversa: combate nobre, face-a-face, recreativo; comunhão de espíritos “para apreciar com toda a energia enquanto dura e merecer a nossa gratidão quando termina”.

Os últimos parágrafos são reservados para um tipo especial de interlocutores: os idosos, cuja presença é, por si só correctiva, pois quando conversam, não é mera literatura o que dizem, “é grande literatura”, afirma. As suas histórias possuem uma eloquência, dada pela experiência, pela passagem do tempo, “e mantendo firmes as suas velhas crenças, reconhecem ao mesmo tempo os seus limites sem cólera ou transtorno” (pág. 75). Breves e intensos, estes livros, indissociáveis da história da cultura anglo-saxónica, são como a companhia ajuizada e bem-humorada de um bom amigo. Levem-nos em viagem.

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