"Tesouro de Baleizão" rendeu 40 mil euros a António Lamas

Foi encontrado há 12 anos por achadores em Baleizão. Mas nunca mais ninguém viu ou ouviu falar deste tesouro da Idade do Bronze. Tudo porque foi alvo de uma querela judicial que envolveu o ex-presidente do CCB, que ganhou a disputa. Para os achadores, nada sobrou.

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José Brissos, um dos achadores Rui Gaudêncio

António Lamas e familiares receberam 40 mil euros por um espólio de 31 peças de ouro, bronze e quartzo, datado da Idade do Bronze inicial. O espólio, conhecido como “tesouro de Baleizão”, de há cerca de 3000 anos a.C., em processo de classificação patrimonial, foi encontrado em 2004 por um pedreiro e um trabalhador agrícola na Herdade da Comenda de que eram, na altura, proprietários o ex-presidente do Centro Cultural de Belém António Lamas e familiares. A posse do achado arqueológico, que os especialistas classificam como raro e valioso, tanto no contexto ibérico como europeu, foi decidida em tribunal, o que levou uma década.

A família Lamas reclamou a totalidade do espólio arqueológico, alegando que só um ano após a sua descoberta dela teve conhecimento. O tribunal não acedeu à sua pretensão e atribuiu-lhe metade do valor estimado por peritos.  

O contencioso à volta do reconhecimento de propriedade do tesouro arrastou-se até 2011 e só em 2015 é que foi sanado o conflito com o tribunal a tomar uma decisão salomónica: face à legislação em vigor, o valioso achado foi considerado propriedade do Estado e de António Lamas e familiares em partes iguais. Mas por se tratar de “um bem indivisível” o primeiro teve de pagar aos segundos 40 mil euros, metade do valor que foi atribuído ao conjunto das peças descobertas com base numa avaliação feita por peritos da Direcção-Geral do Património Cultural.

Os que descobriram as valiosas peças não receberam qualquer importância. A decisão do Tribunal da Comarca de Lisboa, 14.ª Vara Cível, explica porquê: por não ter avisado o dono das terras, onde o valioso testemunho arqueológico foi encontrado, quem o encontrou “perde em benefício do Estado os direitos” que a lei lhe conferia, ou seja, 40 mil euros.  

Achadores: "Peças devem ficar no Estado"

A decisão final do tribunal deixou resignado José António Branco, um dos achadores do tesouro. Ele e o seu amigo José Eduardo Brissos, que faleceu em 2013, tinham decidido que as valiosas peças “deviam permanecer juntas em Portugal e nas mãos do Estado”, revelou ao PÚBLICO.

Desconheciam como proceder nesse sentido e recorreram a José Ambrósio, um amigo comum, também de Baleizão, para fazer chegar o tesouro a boas mãos. José Ambrósio, que tinha por hábito acompanhar a arqueóloga Conceição Lopes nas suas deambulações por centenas de sítios arqueológicos que existem em Baleizão, informou-a do achado e foi a partir daqui que se desencadeou uma série de contactos que envolveram as universidades de Coimbra e Porto. A arqueóloga Raquel Vilaça, que em 2005 escreveu para o Journal of Iberian Archaeology um texto sobre The treasure of Baleizão, Beja (Alentejo, Portugal), relata como foi necessário agir rapidamente, ignorando a burocracia obstrutiva, para evitar a perda destes achados científicos e patrimoniais importantes”. As 31 peças de ouro, bronze e quartzo deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia (MNA), vendidas por 17.450 euros aos achadores, verba integralmente paga com fundos disponibilizados pelo núcleo de amigos deste museu, ou seja, sem envolver verbas públicas. José Ambrósio observa que era “todo o dinheiro que havia na conta, que ficou a zero”.

"Este gesto não impediu que nos acusassem de sermos saqueadores gulosos por dinheiro”, recorda José Branco, fazendo referência aos interrogatórios de agentes da Polícia Judiciária. “[Estavam] desconfiados de que nós tínhamos levantado as peças noutro sítio.” José Branco e José Brissos foram inúmeras vezes ao tribunal de Beja, para responder ao juiz sobre questões relacionadas com a descoberta do tesouro. “Se o tivéssemos vendido a quem nos tinha oferecido muito mais dinheiro do que aquele que nos foi pago pelo Museu Nacional de Arqueologia, não havia idas a tribunal, investigações da Judiciária, nem nos tinham acusado de estar a devassar património.” “[Nem havia um 'tesouro de Baleizão', pois] ninguém ficaria a saber que o tínhamos encontrado”, destaca José Branco.

E, pela primeira vez, acede a falar da sua intervenção na descoberta de um dos mais valiosos achados arqueológicos bimetálicos em Portugal que viria a marcar a sua vida para sempre.

O primeiro sinal de que algo de valioso estaria enterrado na Herdade da Comenda, junto ao rio Guadiana, surgiu no dia 5 de Agosto de 2004. “Vi uns tijolos-burro que me chamaram a atenção pela forma como os encontrei”, recorda. A experiência dizia-lhe que este tipo de materiais significava a presença de algo mais. Deu conta da sua suspeição a José Brissos, com quem fizera uma parceria para a descoberta de vestígios arqueológicos e no dia 15 de Agosto, já passava das duas da tarde e “estava um calor abrasador, para cima dos 35 graus”, decidiram explorar o local. O conhecimento acumulado desde crianças com os seus pais e avós dizia-lhes que aquele iria ser um bom dia talvez para recolher umas belas moedas romanas ou até fenícias.

"Foi a primeira vez que deitei a mão a coisa tão linda"

O chão estava duro. “Agarrámos em dois garrafões de água e despejámos na terra para a amolecer. Começámos a escavar e a uns 20 centímetros abaixo da superfície aparece-nos a boca de um pote de barro. Pensámos que seria mais um igual a tantos outros que se encontram espalhados por vários lados, mas, quando o puxámos, partiu-se e então é que vimos o que tínhamos descoberto. Foi a primeira vez que deitei a mão a uma coisa tão linda. Nunca tinha visto nada assim. Fiquei fascinado”, conta José Branco com a comoção expressa no rosto que tenta esconder com as mãos abertas.

“Disse ao Zé Brissos: 'Vamos vender isto e não dizemos nada a ninguém'”, Ficara surpreendido com a importância do que haviam encontrado. Mas acabaram por decidir que o mais correcto era que o tesouro ficasse em Portugal e com as peças que o compunham juntas, para que todos e sobretudo a população de Baleizão pudessem apreciar o que os dois tinham descoberto.

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O espólio é formado por 31 peças de ouro, bronze e quartzo, da Idade do Bronze Inicial Carlos Lopes

Os dias que se seguiram “foram a loucura”, prossegue o achador. A notícia funcionou como fogo na palha e o Cerro Furado, um dos mais importantes sítios arqueológicos de Baleizão, sofreu as consequências. “Alguém meteu uma charrua num tractor e lavrou o Cerro Furado na expectativa de encontrar ouro. Todos pensaram e muitos ainda pensam que o tesouro foi descoberto no Cerro Furado, e então destruíram aquilo tudo [sem que ninguém interviesse]”, recorda José Branco.

“Encontraram lá [no Cerro Furado] um pote que julgo fenício com cenas de caça pintadas e dentro de alguns dos potes descobertos havia umas bolas de resina [âmbar] com uma formiga no interior”, relata José Branco.

Na sequência de uma queixa apresentada pela Câmara de Beja, que entretanto tinha tomado conhecimento do achado e pedira a intervenção do Ministério da Cultura para evitar a devassa do património arqueológico, José Branco regressou ao local onde descobrira com José Brissos as peças. “Voltei ao lugar do tesouro com a Polícia Judiciária, que estava desconfiada que o tesouro não tivesse sido descoberto ali. Foi então que eu vi um fiozinho de ouro que entreguei a um dos agentes que o guardou dentro de um saquinho”, conta, provando-se, assim, que era aquele o local onde estava o espólio. E continua, fazendo valer a sua experiência em arqueologia: “Eu vou dizer uma coisa: quando se descobre uma coisa daquelas, não há só uma – há mais.”

Também José Brissos voltou ao local onde foi feito o achado levando consigo José Ambrósio e identificou, entre os seixos e cacos de barro, mais uma pepita de ouro e restos de um anel em quartzo que pertenciam ao tesouro.

Hoje o local está completamente coberto por um olival intensivo, “deixando uma porrada de coisas por descobrir”, admite insatisfeito o amigo dos achadores. “Nem existe uma cana que seja a indicar o sítio”, critica.

Morrer na miséria

Decorridos que vão 12 anos desde aquele dia de grande tensão, José Ambrósio recorda os juízos de valor feitos sobre os dois amigos: “Muitos certamente pensarão que ao descobrirem um tesouro estão ricos, mas o Zé [Brissos] acabou por morrer muito doente e na miséria já vão passados quase três anos.” Afinal eles “entregaram o tesouro por uma ninharia, comparando com o que lhes queriam pagar especuladores espanhóis”.   

“O Zé [Brissos] sempre foi um homem extremamente honesto. Três dias antes de falecer fez-me fiel depositário das peças do resto do tesouro, que depois entreguei à sobrinha [Maria João, que é secretária na Junta de Freguesia de Baleizão]”, relata José Ambrósio.

“Não sei como nem a quem devo entregar as peças do tesouro que o meu tio me deixou”, disse Maria João ao PÚBLICO, recordando o que aconteceu ao tio quando este pensou que estava a fazer o que “era certo”. Quer a situação resolvida “de forma honesta, legal” para não cair, também ela, sob a alçada da Justiça.

A acção movida por António Lamas e familiares causou algum desconforto à arqueóloga Conceição Lopes, que se diz cansada e triste por ter sido sujeita a uma situação “penosa”, quando apenas tentou evitar que “um conjunto com um valor científico indiscutível e de alto valor patrimonial caísse nas mãos dos traficantes”. Uma das consequências mais graves reside na desconfiança que as pessoas de Baleizão passaram a ter em relação aos arqueólogos. “Tenho a percepção de que o rumo dos acontecimentos deixou as pessoas de Baleizão muito mais reservadas [em relação aos arqueólogos]. Eu pelo menos sinto isso”, confidenciou a investigadora ao PÚBLICO.

A causa deste mal-estar não é difícil de identificar. É que uma das condições impostas pelos dois achadores, quando venderam o tesouro ao Museu Nacional de Arqueologia, em Setembro de 2004, é que este ficasse com o nome “Tesouro de Baleizão” e fosse mostrado à população. Mas o actual director do museu, António Carvalho, garantiu ao PÚBLICO que ainda ninguém foi falar com ele sobre o "tesouro de Baleizão" “nem o [Luís] Raposo [anterior director] [lhe] passou a obrigação de expor o achado à população”, acentua.

Adianta, contudo, que o tesouro permanece guardado no cofre do Museu Nacional de Arqueologia e que as peças que o compõem “ainda não foram restauradas”, pormenor que impede a sua exposição nos tempos mais próximos. Um constrangimento que a directora regional de Cultura do Alentejo (DRC), Ana Paula Amendoeira, quer ver superado. Já encetou contactos e negocições com “a Câmara de Beja, a Junta de Freguesia de Baleizão e a Direcção-Geral do Património Cultural, entidade que tutela o Património Cultural e o Museu Nacional de Arqueologia”, para que o tesouro “seja mostrado na comunidade de onde é proveniente". Paula Amendoeira diz pretender “honrar um compromisso assumido pelos responsáveis à época dos acontecimentos”. A DRC está ainda a preparar, com as entidades atrás referidas, uma proposta para a classificação patrimonial do referido tesouro.

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A Direcção-Geral do Património Cultural adiantou ao PÚBLICO que o tesouro “pertence ao Estado e está incorporado no Museu Nacional de Arqueologia como qualquer acervo depositado no museu”. Só após a avaliação do respectivo “estado de conservação e da relevância e oportunidade dos projectos expositivos em curso, pode [o MNA], quando o entender, vir a apresentá-lo publicamente integrado numa exposição”.

O presidente da Câmara de Beja, João Rocha, por seu lado, disse ao PÚBLICO que a autarquia está disposta a comprar o tesouro pelo mesmo valor que foi vendido ao Estado, comprometendo-se a expô-lo num espaço adequado à importância do achado.

O entusiasmo e a expectativa criada na população de Baleizão desvaneceu-se com o decorrer dos anos. E hoje, como o PÚBLICO pode constatar, o silêncio ou as respostas monossilábicas surgem como reacção de quem não está disposto a falar de um acontecimento que buliu com a pacatez da comunidade, inconformada por ter acreditado que teria o tesouro exposto na sua terra, quando na realidade tal nunca aconteceu. Desde que dois homens da terra, José Branco e José Brissos, levantaram do chão um testemunho impressionante datado de há 3000 anos a.C., ninguém ainda viu “nem a cor nem o feitio” do achado arqueológico.

Uma lei que não se adequa à realidade

Num texto publicado em Outubro de 2005 pelo arqueólogo Luís Raposo com o título "Achados avulsos e detectores", o autor retrata o que pode ser entendido como um cenário hipotético. No entanto, a descrição feita identifica os episódios reais que envolveram a aquisição do “tesouro de Baleizão” pelo Museu Nacional de Arqueologia de que era então director.

Neste texto, Luís Raposo confronta a realidade que se sabe existir no terreno com o articulado da Lei 121/99, que logo no seu artigo primeiro diz que “é proibida a utilização de detectores de metais na pesquisa de objectos e artefactos relevantes para a história, para a arte, para a numismática ou para a arqueologia”.

E parte para os factos concretos, recorrendo a uma hipótese imaginária, através da qual procura demonstrar como a lei tem “consequências nefastas” quando se revela “deficiente” a sua aplicação “num terreno explosivo” associado ao uso de detectores de metais.   

Imagine-se então “que um qualquer trabalhador rural desempregado” (como José Branco) “percorre os campos à procura de coisas antigas, talvez valiosas”. Imagine-se ainda que o mesmo trabalhador “descobre efectivamente algo (…) e que o mais natural ímpeto será obviamente o de imediatamente avisar o tal 'doutor' ou comerciante” do que acaba de encontrar. Imagine-se, por fim, que o mesmo trabalhador rural “avisa do achado um arqueólogo que por acaso viu andar nos campos da sua terra. E lhe diz o que descobriu, prestando-se a entregar-lho, desde que seja recompensado, senão no valor que o tal 'doutor' lhe pagaria, pelo menos em algum montante, metade ou um terço desse valor”. 

“Que resposta terá esse arqueólogo e teremos todos nós, arqueólogos, defensores do património arqueológico ou responsáveis pela gestão do mesmo, para dar àquele homem? Dizemos-lhe que não nos é possível entrar em tal tipo de acordos, porque não existe regulamentação da lei (…)? Denunciamo-lo à polícia? Aceitamos, mediante certas condições (conhecimento do local exacto do achado, garantia de não realização nesse local de acções detectoristas, etc.), entabular negociações que possam acabar numa recompensa monetária pela sua descoberta? Ou então: haverá GNR que baste para impedir este comportamento?", questiona Luís Raposo, consciente de que o património arqueológico nacional “tem sido mais delapidado nas duas últimas décadas do que em todos os séculos anteriores” e sem deixar rasto.

Na conversa telefónica que manteve com o PÚBLICO, o arqueólogo reforça esta linha de pensamento, advogando que a descoberta de um achado como o “tesouro de Baleizão” deve reger-se “pela legislação dos achados arqueológicos e não pela dos tesouros”. E faz um paralelismo: “Se numa propriedade for descoberto um filão de um determinado minério, este é património público [e não pertença do proprietário ou proprietários das terras].”

Referindo-se à importância do achado em Baleizão, o arqueológo diz que se “justifica plenamente a sua classificação como tesouro nacional pelo seu valor histórico”.

Por isso, a posição de António Lamas merece-lhe uma apreciação crítica. “Como é que uma pessoa que sempre se posicionou como defensor do património arqueológico do Estado, que deveria estar vinculado à defesa da arqueologia, demanda em tribunal a organização onde antes fora presidente, colidindo com práticas éticas?” Luís Raposo reporta-se ao tempo em que António Lamas foi presidente do Instituto Português do Património Cultural (IPPC), entre 1987 e 1990.

Mas esta posição não tem acolhimento por parte do visado, que acusa Luís Raposo de ter assumido em tribunal “posições contraditórias face ao que já tinha dito publicamente”, quando afirmou que o “tesouro talvez não tivesse sido achado na Comenda e que não valia muito por ser uma mistura de peças, etc.”

Os conflitos com Luís Raposo “já são muito antigos”, refere António Lamas, reportando-os ao tempo que era presidente do IPPC. Prosseguiram no diferendo que se aprofundou durante o julgamento do processo judicial que moveu com familiares seus para reclamar o reconhecimento da posse do “tesouro de Baleizão”.  

“Um povo sem a sua história não existe”

Familiares de José Brissos, um dos achadores, fizeram chegar ao PÚBLICO um dossier que é uma espécie de diário onde o “arqueólogo” autodidacta escrevia os seus pensamentos, expressava os seus conhecimentos sobre o passado histórico de Baleizão e desenhava com um pormenor impressionante as peças que descobria ou copiava as que via em livros. Acalentou sempre um sonho: ajudar a instalar na sua terra um museu de arqueologia. Morreu em 2013 na mais extrema pobreza, consumido por um melanoma. E, mesmo quando a doença lhe levava a vida, “o Zé vinha da quimioterapia que fazia da parte da manhã no hospital de Beja” para de tarde se embrenhar pelos campos em volta de Baleizão na busca de mais achados arqueológicos, recorda o amigo Ambrósio, que lhe pagou o funeral.

A sobrinha Maria João acolheu-o na sua casa na fase final da sua vida, quando José Brissos já não conseguia assegurar o seu sustento e lembra a “canseira que era” chamar a atenção do tio para os riscos de se expor ao sol, “coisa que os médicos lhe tinham proibido”.

“Não era muito dado à família. Não falava com ninguém e refugiava-se nos apontamentos que tirava sobre coisas da arqueologia”, conta a sobrinha. E fala do seu empenho na instalação de um museu em Baleizão, pois “tinha uma clara noção da riqueza patrimonial existente na freguesia, receoso que se perdesse”. Chegou a estar preparada a inauguração de uma exposição do "tesouro em Baleizão", quando Isabel Alçada era ministra da Cultura, “mas a promessa nunca se concretizou”, lamenta José Ambrósio.

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José Brissos, um dos achadores Rui Gaudêncio

O seu “diário” é revelador de como um homem com instrução básica, pedreiro de profissão, tinha conhecimentos tão profundos e completos sobre história e arqueologia. Fez uma listagem do que era necessário empreender para elaborar a “carta arqueológica” de Baleizão. Nela Brissos assinalou 15 sítios arqueológicos, acompanhados de fotografias para comprovar os achados que já tinha recolhido: mós de moinho, tijolos, marcos de delimitação de propriedade romanos e diversos instrumentos em ferro, pedra polida e em chumbo, etc.

Perguntavam-lhe porquê tanto empenho quando estava tão doente. “Dos fracos não reza a história”, escreveu ele no seu diário, onde desenhou dezenas de peças desde o século VII a.C., moedas da presença romana em Pax Júlia, potes e ânforas da Idade do Bronze, um jarro fenício, esculturas oferendas aos deuses do século V a.C. e até uma estela do século II a.C.

O “tesouro de Baleizão” tem todas as suas peças desenhadas, incluindo o pote onde estavam acondicionadas, com uma indicação: “Por entregar [ao MNA] uma pepita de ouro e o resto de um anel de quartzo.”

Alexandre Brenhas, marido de Maria João, lamenta que na própria comunidade de Baleizão haja pessoas que o consideravam “um louco”. “[Mas] quando aquela cabeça entrava em manobras, tínhamos de reconhecer que era um homem muito inteligente, que morreu sem nada.” Mesmo assim, “passou por criminoso, destruidor de património, o que é revoltante”, observa.

“Um povo sem história não existe”, vincou José Brissos numa das folhas do seu “diário”. Morreu deixando apenas sonhos escritos, sem um tostão.

O seu companheiro de pesquisa, José Branco, corta erva na periferia de Beja, um trabalho que lhe foi atribuído pelo Fundo de Desemprego, tarefa que vai desempenhar até Fevereiro, depois… logo se vê.

Também ele “é filho da má fortuna”, apesar de ser suspeito de ganhar muito dinheiro com as moedas. “No dia 1 de Junho”, confidencia ao PÚBLICO, “fui ao multibanco e tinha lá 15 euros. Levantei 10 euros fiquei com 5." "No dia 1 de Junho”, repete.

O seu desagrado estende-se aos empresários espanhóis. “Voltámos a 1580. Ninguém tem noção da destruição que eles fizeram no nosso património arqueológico com 'as químicas' que lançam para tratar dos olivais. Moedas que se descubram junto a uma oliveira estão corroídas. Químicas e adubos estragam-nas”, insurge-se José Branco, frisando que o gosto pela arqueologia foi-lhe transmitida pelo pai, que dizia ser “descendente de romanos”.

Esculpia imperadores em pedra e fazia lucernas em barro. Achou centenas de moedas na esperança de ganhar algum dinheiro, mas nunca passou de pobre. José Branco, agora com 52 anos, só tem um sonho: achar um bom tesouro. “Se tal vier a acontecer, não digo nada a ninguém, senão vêm buscá-lo e arranjam-me problemas com a Justiça.”

Lamas soube da descoberta do tesouro pelo PÚBLICO

Ao contrário do que exige a legislação em vigor, os proprietários do terreno onde o tesouro foi descoberto a 15 de Agosto de 2004 não foram informados do achado. “Quando li, na primeira página da edição do PÚBLICO (de 15 de Abril de 2005), uma peça com o título 'O tesouro de Baleizão', fiquei curioso, mas estava longe de saber que tinha sido numa propriedade nossa”, relata António Lamas. E só quase um ano depois é que recebeu a informação da Câmara de Beja de que o achado arqueológico tinha sido encontrado na Herdade da Comenda de que era co-proprietário com familiares. A propriedade, entretanto, foi vendida.

António Lamas explicou ao PÚBLICO que antes de accionar o processo judicial fez uma exposição à então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, a denunciar o “incumprimento da lei”, assim como a actuação de Luís Raposo, então director do Museu Nacional de Arqueologia (MNA).

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António Lamas Nuno Ferreira Santos

Este foi acusado de saber que o tesouro tinha sido encontrado em propriedade privada, mas mesmo assim procedeu à sua compra, “sem fazer as mínimas averiguações” quanto à legitimidade dos que o tinham achado para assumir a propriedade do mesmo e proceder à sua venda ao MNA.

Como da parte da tutela não houve resposta, António Lamas e família intentaram, em 2008, uma acção judicial para que fosse reconhecido o direito de propriedade do tesouro e que este lhes fosse restituído. Exigiram ainda que o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) – entidade que tutela o MNA – fosse “condenado ao pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega do tesouro”. No caso da restituição se tornar impossível, António Lamas e familiares reclamaram o pagamento de uma indemnização “de valor não inferior a 40 mil euros, acrescida de juros de mora calculados a partir da citação”.

Em 2011, o juiz da 14.ª Vara Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa declarou António Lamas e familiares “co-proprietários do tesouro” e condenou o IMC ao pagamento de uma quantia não inferior a 40 mil euros, acrescida de juros a partir da citação, quantia essa alegadamente correspondente a metade do valor do referido tesouro. A instância judicial julgou “improcedente o pedido de condenação do IMC”, assim como o “pedido de condenação na sanção pecuniária compulsória”.

Em 2010, foi intentada uma 2.ª acção, esta para avaliação do tesouro, processo que António Lamas considerou “longo e lamentável”. A Direcção-Geral do Património Cultural adiantou ao PÚBLICO que em 2014 foi interposta uma nova acção contra o Estado para “pôr termo à indivisão do tesouro, fazer a adjudicação e venda da parte que pertencia aos autores, peticionando-se ainda o pagamento de juros de mora”. No seguimento desta acção, o tesouro foi avaliado por peritos “designados pelo Estado”, que lhe atribuíram um valor de 52.000 euros. Esse valor acaba por ser muito inferior ao que foi apurado pelo tribunal, que decidiu fixá-lo em 80 mil euros.

O processo terminou com uma sentença judicial que homologou a transacção entre os autores da acção e o IMC e que consistiu no pagamento de 40.000 euros a António Lamas e familiares.

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