“A História é como a colonização: reprimiu-nos mas não nos roubou as almas”

Jihan El-Tahri quer que os seus documentários sejam uma voz alternativa para contar a História de África e reivindica um espaço na corrente dominante, que diz ser “a narrativa do Ocidente”. Está farta de que os africanos sejam do gueto, quer vê-los ao lado dos brancos, com eles e não debaixo deles.

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ADRIANO MIRANDA

No início dos anos 90, trocou o jornalismo pela realização de documentários e, desde então, já filmou nos campos de treino de Bin Laden no Sudão, documentou o período do Apartheid na África do Sul e o papel de Cuba nas lutas de independência africanas. Defende que não são os discursos feitos para ecoar mas as suas entrelinhas que lhe permitem chegar onde quer. Para isso, precisa de tempo. Ter tempo para reflectir, para se distanciar, é o único luxo em que decidiu investir.

Ainda não tinha dito uma palavra e o olhar vivo e desafiador já fazia antever “uma mulher politicamente incorrecta”, como mais tarde se viria a apresentar. Jihan El-Tahri nasceu no Egipto, vive em França há 27 anos e sempre que diz “nós” quer dizer “africanos”. Tem dúvidas que a democracia tal como o Ocidente a concebe seja a melhor forma de governo possível e defende que as vítimas do colonialismo, tal como as vítimas do holocausto, deveriam ter retribuições. Aos 53 anos, garante que não se importa de ser demonizada por aquilo que diz -  “estou numa fase da minha vida em que já não preciso de ter filtros” – e assume-se numa cruzada: reivindica outra narrativa para África, o outro lado da História que os livros teimam em não contar.

Nasser - o seu último filme que retrata a chegada ao poder do dirigente egípcio Gamal Abdul Nasser (Presidente entre 1956 e 1970) e a sua luta para tornar o país num líder secular do mundo árabe - levou cinco anos a estar concluído e foi exibido em Fevereiro no Museu de Arte Moderna (MoMA) em Nova Iorque. Se vai estrear em Portugal? Isso depende. “Se me telefonarem, digo que sim. Se não, também não me preocupo. Isto pode soar arrogante, mas não é. Todo o processo de preencher inscrições, de fazer candidaturas a festivais, é muito pesado. Sou sozinha, não tenho assistentes. O único motivo por que os meus filmes [Cuba, Uma Odisseia Africana e Behind The Rainbow] passaram no Doclisboa [em 2007 e 2009] foi porque me telefonaram.”

Um dos objectivos do seu trabalho é contar a História de África a partir de outros ângulos. Por que sentiu a necessidade de uma narrativa alternativa?
Porque simplesmente não me revia em nenhuma das existentes. Sou africana com educação ocidental, não me enquadro em nenhum dos estereótipos que encontro ao meu redor para me classificar.  Quando digo que sou africana falo no sentido mais lato de africano: um espaço continental com uma história partilhada e, acima de tudo, com um desejo profundo de avançar e se juntar à História colectiva mundial. Sem sermos marginalizados ou considerados subdesenvolvidos e selvagens, porque não o somos. A nossa História não foi tão bem documentada como muitas outras porque temos uma cultura oral, revelá-la dá mais trabalho mas eu estou disposta a fazê-lo. É fácil ir à Getty Images ou à AP [Associated Press] porque são muito acessíveis, ir à procura da pessoa real que conta a História sob a sua perspetiva é muito mais difícil. Utilizo a forma clássica -  entrevistas e consulta de arquivos - , mas o conteúdo é analisado a partir de uma perspectiva diferente. Recorro ao método ocidental tradicional, mas incluo a narrativa africana.

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Nasser, que retrata a chegada ao poder do dirigente egípcio Gamal Abdul Nasser, foi exibido em Fevereiro no MoMA

A História do seu continente foi roubada?
Hesitaria em afirmar que houve um roubo da História de África porque ninguém nos pode roubar a História. A nossa História pertence-nos, é como a colonização: reprimiu-nos mas não nos roubou as almas, transformou-nos mas não nos mudou a identidade. Houve uma tentativa de adaptar e ocultar muito do que África realmente é, mas chegámos a um momento (agora mais do que nos anos 1950 e 60) em que existem muito mais pessoas educadas, com acesso à mesma tecnologia, capazes de fazer a diferença. Se quisermos estudar um tema podemos ir à Internet, onde encontramos a História do Congo escrita por belgas, mas também encontramos textos de outros autores sobre o assunto. Além disso, o que não faltam são académicos africanos a participar neste diálogo. Como jovem africana - ainda sou jovem [ri-se] -, já tenho acesso a tudo isso e tenho muito mais hipóteses de reinterpretar - não reinventar -  e requisitar a nossa História. É verdade que a Europa roubou muitas coisas: roubou a riqueza das nossas terras e a subsistência de África; roubou a juventude a muitas pessoas; roubou muitas memórias; roubou muitos dos artefactos que hoje encontramos expostos nos vossos museus e não nos locais a que pertencem... Mas não creio que nos possa roubar a História.

Muitos africanos sublinham que África não é um país mas um continente cheio de especificidades. Ao falar de África como um todo não poderá estar a prejudicar essa luta?
Quando falo de África, falo de um colectivo. Posso fazê-lo porque conheço a sua complexidade. Mas quando alguém me diz que os africanos são todos iguais pergunto sempre: Que africanos? Os Zulus, os Bantos? Os árabes ou os tuaregues? Existem similaridades, mas recuso-me a usar a palavra África para simplificar, para reduzir.

O seu próprio país parece ter virado costas à África-subsaariana...
Sim, o Egipto virou costas a África. O facto de no Norte do Egipto haver uma grande mistura, gente de todo o lado, faz com que os egípcios se sintam especiais, e não parte de África. Mas também temos muitos negros. Há um certo sentido de superioridade relativamente ao continente.

Ao fazer filmes sobre essa parte do continente tenta, de alguma forma, reverter a tendência?
Carrego comigo uma bandeira. A cada egípcio que encontro digo: Tu és africano, quer gostes ou não. Acho que é uma forma de alertar para o facto de que ser africano não significa que não podes ser muitas outras coisas. Ao rejeitares a tua africanidade estás a roubar muito de ti, e as pessoas não têm consciência disso. Por isso estou numa cruzada, porque no momento em que os egípcios olham para Norte têm de atravessar um mar, não é a sua extensão natural. A sua extensão natural é o Sul. Quanto menos percebem isso, mais parcerias, rotas de mercado e de transporte estão a perder. Para ir do Cairo à Cidade do Cabo [África do Sul] é uma linha recta; se se quiser chegar a Itália tem de se atravessar o mar. São muitos os egípcios que começam a participar nos festivais de filmes africanos. Pouco a pouco, há um certo negativismo associado a África que começa a desaparecer.

Defende que o documentário é parte de uma “voz colectiva”. O que quer dizer com isso?
Como disseram os Pink Floyd “another brick in the wall [mais um tijolo na parede]”. O documentário é um dos tijolos que permitem entender um puzzle maior. Todas as pessoas que entrevistei são peças desse puzzle, juntas fazem uma linda fotografia. Pode fazer-se um puzzle de 10 peças ou de 600. Em que momento é que as pessoas têm acesso a material de arquivo? Quando vêem um documentário. Se alguém dissesse hoje que o Cairo já foi uma das cidades mais limpas do mundo ninguém acreditaria. Mas quando se consultam imagens de arquivo de 1995 é o que se vê: era uma cidade sem confusão e impecavelmente limpa. Como é possível transmitir essa realidade para alguém que lá vive hoje? Vendo um documentário, esse tijolo na parede do conhecimento.

Os livros de História não têm também essa tarefa?
Os livros de História que estudei não referiam o nome do primeiro presidente do Egipto. Cresci a pensar que Gamal Abdel Nasser foi o primeiro presidente do meu país, mas quando comecei a mergulhar mais fundo nos arquivos, em busca de uma perspectiva diferente, deparei-me subitamente com Muhammad Naguib. Quem era ele? Foi presidente entre 1953 e 1954 [depois da revolução que proclamou a República no Egipto], de quem ninguém ouviu falar. O facto de não se saber nada dele e os motivos que levaram a isso também fazem parte da História. Por isso, os livros de História são insuficientes nessa tarefa, o meu filme Nasser é um contributo para o conhecimento coletivo.

O  internacionalismo é um conceito muito presente no seu documentário Cuba, Uma Odisseia Africana (2007) de que hoje pouco se fala, que não se aprende nas escolas. Porque é que isto acontece?
Quem é que desenha os currículos? Uma das razões porque o internacionalismo é um conceito fugaz é porque falhou, a outra é porque nenhum dos países que o defenderam interessa. Acredito mais nos processos do que nos resultados. O facto de algo ter falhado não significa que não tenha sido importante, que não tenha tido impacto, que não acrescente corpo ao conhecimento sobre um determinado período. Como pode uma geração saber do seu futuro se não conhece o seu passado? O internacionalismo não faz parte das perguntas feitas nos exames da escola porque não entra na ordem mundial, onde a realidade é vista a partir das ideologias e pensamentos do Norte. Mas existem vestígios: de um modo engraçado, a globalização é hoje parte daquilo que o internacionalismo foi, mas de um ângulo diferente, de um espaço diferente. A intenção do internacionalismo era promover a solidariedade entre os mais fracos: nós somos fracos, nós podemos ajudar-nos uns aos outros e tornarmo-nos mais fortes; enquanto a globalização quer criar uniformidade. A diversidade enfraquece a globalização, enquanto o internacionalismo defendia a diferença e tornava-a numa força.

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Jihan El-Tahri afirma que "os livros de História são insuficientes". Por isso, Nasser "é um contributo para o conhecimento coletivo". Na imagem, Naguib, presidente entre 1953 e 1954, com Nasser

Diz ser muito céptica relativamente ao termo democracia. Porquê?
Democracia é uma palavra muito complicada. Não quero parecer uma fascista ou algo do género, mas falamos de um homem, um voto? Esse conceito aplicado a alguns países muçulmanos significaria ter o radicalismo islâmico como uma forma democrática de governo, porque grande parte das pessoas vive em áreas rurais onde só se aprende o Alcorão.

Se não fosse a democracia, o que poderia ser?
Não estou aqui para inventar um sistema político. Acredito apenas que proporcionar uma vida digna a cada indivíduo deveria ser aquilo que todos os governos querem perseguir. Em 1997, quando filmei nos Estados Unidos da América (EUA) tive um problema de saúde e não pude ir ao hospital porque não tinha um seguro, deixamos de ser seres humanos porque não temos dinheiro? Não percebo porque devemos defender e lutar por este tipo de democracia, esta forma de governar. Quando houve eleições em Gaza, em 2006, havia inspectores internacionais, supervisores ocidentais por todo o lado, e quem ganhou? O Hamas [o mais importante movimento fundamentalista islâmico da Palestina]. Ninguém queria aceitar mas havia provas de que não houve fraude nas mesas de voto. Se gostei dos resultados? Não. Se os devo aceitar? Como posso não fazê-lo, a quem é que estes resultados não serviam? Penso muitas vezes porque é que os africanos não podem impedir os americanos de escolher Donald Trump como próximo presidente dos EUA? E porque é que parece não existir nenhum pudor em colocar a equação ao contrário? Veja-se o que aconteceu com Robert Mugabe [Presidente do Zimbabwe desde 1987 - foi o mais votado em todas as eleições desde então - é acusado de ser um ditador por estar no poder há quase 30 anos. Foi o responsável por implementar uma reforma agrária que obrigou quatro mil fazendeiros brancos a abandonarem as terras que ocupavam. Em 2002, os EUA e a União Europeia decretaram um embargo de armas ao Zimbabwe alegando “sérias violações dos direitos humanos e da liberdade de opinião”]. Podem gostar ou não gostar dele, mas porque razão este é um assunto sobre o qual se acham em posição de decidir, de tomar medidas?

Foram muitos os líderes africanos que acabaram por se tornar ditadores.
Hoje sou mais relutante em chamar-lhes ditadores porque não acho que chegam ao poder já feitos ditadores. Ninguém chega e diz: serei um ditador agora.  O processo de exercer o poder é que os tornou assim. Ironicamente, os piores ditadores são justamente os que tiveram - ou têm - uma visão real para a mudança. No caso do Egipto, Nasser chegou ao poder com uma visão clara para o desenvolvimento do país. Queria o melhor, o problema é que a sua visão subitamente tornou-se a única narrativa válida e ninguém que fosse contra isso poderia abrir a boca. Se não houver integração de outras narrativas para uma construção colectiva, acabas com uma mono-visão, penso que isso é o que acontece na maioria dos países africanos. É inevitável que houvessem ditadores? Gostaria de dizer não, mas penso que a mudança é algo complicado e geri-la de uma forma inclusiva é ainda mais complexo. O mais fácil, como temos visto, é calar toda a gente e dizer:  “deixa-me trabalhar, depois logo falas”.

Considera que na Europa este processo foi diferente?
A Europa chegou onde está depois de mais de cem anos de guerras. O processo democrático levou muito tempo e teve muitos conflitos. A corrupção, por exemplo, existe na Europa exatamente da mesma forma que em África, mas vocês são mais espertos na forma como lidam com os vossos corruptos. Jacques Chirac [ex- Presidente francês, entre 1995 e 2007, foi condenado em 2011 a dois anos de prisão com pena suspensa pelos crimes de desvio de fundos públicos e abuso de confiança pública] foi apanhado em flagrante mas ninguém o pôde acusar porque era Presidente, tiveram de esperar que terminasse o mandato. Não aceito falar das ditaduras africanas apenas, como se não houvessem ditadores na Europa. Não vou cair no erro de acusar apenas os líderes africanos.

Em Behind the Rainbow [Atrás do Arco-íris] (2008), mostra os desafios vividos na África do Sul pós-Apartheid, uma realidade semelhante àquela por que passaram muitos países colonizados que conquistaram a independência.
Todos os países africanos adoram dizer que são especiais e diferentes e que, por isso, o Apartheid não foi necessariamente colonialismo. Ser um protectorado não é bem o mesmo que ser uma colónia, dizem. Não sou muito dada a obedecer às regras e não tenho queda para estes jogos de semântica. Não me interessa como lhe chamam:  poder colonial ou grupo a agir como poder colonial. Foram colonizadores e ponto final. Ora, o processo de reconquistar a nossa liberdade assumiu diversas formas, mas assentava num sonho tal que as pessoas estavam dispostas a sacrificar-se pela  liberdade, pela dignidade e pela vida como seres humanos. Estes são os três elementos primordiais. É por isso que o slogan da revolução egípcia de 2011 [uma série de manifestações de rua que ocorreram no Egipto entre 25 de Janeiro e 11 de Fevereiro de 2011 com o objectivo de derrubar o regime de Honi Mubarak, no poder há 30 anos] era fantástico: “Pão, liberdade, justiça social e dignidade humana”. Essa foi a verdadeira causa das guerras da descolonização.

Como é que tantos líderes independentistas, defensores da liberdade, se tornaram em inimigos das pessoas por quem lutaram?
Se aqueles que consideramos os  nossos heróis — que lutaram pela nossa liberdade  - não tivessem feito o que fizeram, e não tivessem mobilizado outras pessoas, não estaríamos onde estamos agora. Como é que o meu herói se tornou no meu opressor? O que é que lhe aconteceu? Tenho algumas reflexões, mas nenhuma resposta. O que me parece é que lutar pela libertação é muito diferente de governar. Governar requer outras capacidades, daí heróis de libertação espantosos se terem tornado em governantes incapazes. Tratam das coisas em segredo e à margem, mas isso não é governação. Governar deve assentar na transparência e na inclusão. Culpo o sistema que, de certa forma, obrigou os nossos heróis da luta pela libertação a serem os nossos chefes de Estado pós-coloniais. É dar-lhes uma tarefa para a qual não estão habilitados. Em segundo lugar, se pensarmos bem, constataremos que todos os países colonizados passaram por um processo de negociação até serem autónomos. Quem é que dirigiu a mesa das negociações? Foi a mesma pessoa que se dispôs a dar a vida por essa causa. Foram obrigados a fazer cedências e, ao fazer cedências, abriram a porta para outro tipo de coisas. Em terceiro lugar, perdeu-se o sonho. Os nossos heróis começaram com um sonho, mas, depois, são confrontados com a realidade da governação diária. Querem proporcionar educação a todos, mas como é que isso se faz? Em muitos aspectos, tenho muita compaixão por eles, preferia que tivessem parado antes. É incompreensível pensar que pessoas como [Jacob] Zuma [Presidente da África do Sul] fizeram o que fizeram. Ele era o homem que arranjava dinheiro para o movimento de resistência ao Apartheid na África do Sul. Era dinheiro sem recibos. Porque é que antes ele não estava ligado a escândalos de corrupção, se tinha os meios necessários para meter o dinheiro que quisesse ao bolso sem que ninguém pudesse dar por isso? Agora chega ao negócio das armas e deixa-se corromper por 50 mil dólares? Não é ridículo? O que é que lhes acontece? O que os leva a mudar assim?

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No filme Behind the Rainbow mostra os desafios vividos na África do Sul pós-Apartheid

As ex-colónias africanas são hoje países verdadeiramente independentes?
Hoje todos temos bandeiras e um território. Segundo as Nações Unidas, isso chama-se independência. É verdade que não somos mais colónias porque não somos mais crianças - não vou infantilizar África e afirmar que não somos independentes. A pergunta que se deve colocar é: Temos hoje a independência que almejávamos? A resposta é não. Temos, sim, um território, uma bandeira; temos os meios e temos inclusivamente a capacidade de fecharmos as nossas fronteiras e  dizer "toda a gente lá para fora" até que resolvamos os nossos próprios assuntos, como fez o Japão. Temos essa capacidade, mas as interligações que vieram com o processo da descolonização tornaram-na praticamente impossível. Eliminar toda a infraestrutura colonial e construir uma realidade que nos torne verdadeiramente independentes é impossível. Como fazê-lo? Fechar o país? Eliminar todos os currículos educacionais? Eliminar as infraestruturas estatais? Não é possível parar tudo e criar uma realidade diferente de um dia para o outro, nunca tivemos tempo para levar a cabo esse processo. Um Sul-Africano deu um exemplo maravilhoso para explicar o quão colonizados permanecemos: “Nós somos como um capuccino. Temos uma forma branca com bocados de chocolate em cima.” Esses bocados de caras negras é a visão que temos, mas a real infraestrutura que nos suporta continua a ser branca.

A independência de muitos desses países aconteceu há 40 anos ou mais, não houve ainda tempo para tentar fazer diferente?
Terem deixado África torna os europeus, de repente, nos bonzinhos? E aquilo que deixaram para trás - no caso de Angola, por exemplo, 27 anos de guerra civil? Não estou a dizer que deveriam lá ter ficado, é óptimo que se tenham ido embora. Mas sabiam bem o que iria acontecer a seguir, deveriam ter encontrado outra forma de o fazer. Não terão nenhuma responsabilidade pelas centenas de anos que ficaram em África? Claro que têm. Até vou mais além: porque é aceite que se peçam indeminizações pelos danos causados aos sobreviventes do Holocausto e o mesmo não aconteça connosco?

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Os nossos heróis começaram com um sonho, mas, depois, são confrontados com a realidade da governação diária. Querem proporcionar educação a todos, mas como é que isso se faz?

Está a comparar o colonialismo ao holocausto?
Não quero ficar encostada a um canto em que tenho de equacionar holocausto e colonialismo, mas se aquilo que aconteceu no Congo [o conflito que provocou mais mortos desde a Segunda Guerra Mundial] não foi um holocausto, então não sei o que foi o holocausto. E aos arménios? A palavra holocausto está tão carregada de significado que tenho plena consciência de que serei demonizada pelo que estou a dizer. Demonizem-me à vontade, acredito que os termos em que faço esta comparação são válidos. Os judeus são pessoas que foram dizimadas por algo que nunca deveria ter acontecido. Acredito que os africanos e muitos países de África foram dizimados por algo que nunca deveria ter acontecido. Holocausto e colonialismo são diferentes realidades e não quero retirar-lhes a sua complexidade, mas  os africanos também deveriam ter retribuições. A Europa deveria receber  e tratar de cada um de estes imigrantes caladinha. Os refugiados são a reminiscência da confusão que fizeram nos seus países. Agora querem que cheguem e digam “obrigado, obrigado, obrigado pelo que estão a fazer por mim”. É isso que eles farão, mas a sério, não há vergonha?

O seu discurso reflecte um permanente conflito entre África e a Europa, entre brancos e negros.
Sei que o meu discurso pode parecer estar muito ligado à questão do blackpower, e de facto está. É do poder dos negros de que falo. Porque não? Mas porque é que o poder dos negros não pode estar ao mesmo nível e ao lado do poder dos brancos? Quero estar com eles e não debaixo deles. Assim que isso acontecer, deixaremos de falar em branco e negro e passaremos a falar em seres humanos. Assim que todos tiverem direito a uma certa dignidade e o factor de distinção passar a ser o grau de humanidade e não as origens étnicas, já poderemos conversar. Mas, até agora, as pessoas falam-me de cima. Não quero que me falem de cima.

O que é que a Europa pode aprender com África?
A Europa pode aprender a beleza da diversidade. Como o sentido de comunidade é algo que constrói. De onde venho, ter um filho não é só uma responsabilidade individual, é responsabilidade de toda a comunidade. Não se pensa “meu Deus, tenho de o pôr numa creche ou o que é que vou fazer à minha vida? Como vou trabalhar? Vivo na Europa e adoro viver na Europa mas às vezes sinto-me sozinha. Ninguém me vem bater à porta só para conversar, para perguntar como estou, o que tenho andado a fazer. No Egipto, se se passar perto de uma obra à hora de almoço os trabalhadores vão convidar-te para comer pão com cebola, aquilo que é geralmente a sua refeição.  O que temos, partilhamos - a comida é apenas uma desculpa, estarmos todos juntos é o que realmente importa. E esse sentido de partilha acho que se está a perder na Europa rapidamente, nas cidades já desapareceu definitivamente mas penso ainda haver esperança para as áreas rurais porque em algumas das aldeias que visitei em França senti-me em África.

Voltemos ao trabalho. Como é possível, nos dias de hoje, fazer documentários que levam anos a serem produzidos?
Ter tempo é um luxo. Se o meu pai [ex-diplomata] e as minhas irmãs não tivessem dinheiro e estivessem dispostos a apoiar-me, penso que não teria esse luxo. 40% do orçamento total de um filme só é pago pelos financiadores no final. Isso significa que a única pessoa da equipa que pode não ser paga és tu, já cheguei a ficar um ano inteiro sem ver entrar 10 euros na minha conta. Zero. Para terminar o Nasser, vendi o apartamento de 120 m2 [em Paris], onde vivi durante 25 anos, onde as minhas filhas cresceram, e troquei-o por um estúdio de 30 m2. A decisão daquilo em que queres investir é muito importante, eu decidi investir em tempo. Poderia ter comprado um carro, e não tenho um carro; poderia ter ido de férias e nunca paguei um bilhete de avião na minha vida. Os meus filmes são extremamente caros, o Nasser custou quase 900 mil euros. Cada minuto de material de arquivo custa 200 euros, cada dia de filmagens pode custar até 8000 euros. A edição é a parte mais longa do processo, aí paga-se o estúdio, pagam-se os técnicos, paga-se o assistente de edição, o editor. O Dinheiro voa.

E como é que se consegue todo esse dinheiro?
É muito difícil mas existem sempre formas, faz-se um plano. Às vezes vou a festivais e peço para me comprarem os bilhetes pela Air France porque assim acumulo créditos em milhas no meu cartão que depois uso para viajar em filmagens. Há sempre a opção de fazer tudo sozinha: tens uma câmara e filmas. Penso estar entre os poucos que têm o privilégio de poder trabalhar com uma equipa adequada. Se terei esse luxo no próximo filme? Acho que não, já não existe espaço para os documentários que faço nos media mainstream. Sabem quanto é que um canal de televisão suíço pagou para passar um dos meus filmes? 14 mil euros. Literalmente, três dias de filmagem.

Fala dos canais de televisão mainstream. O espaço para os seus documentários é aí?
O gueto é para nós, africanos, o lugar a que pertencemos. Somos sistematicamente expulsos dos canais de televisão dos países ocidentais, dos festivais de cinema que se realizam na Europa, porque "para a vossa malta estar nos festivais de cinema africanos já é muito bom". Tenho orgulho desse meio do qual faço parte, mas não é o único espaço em que posso estar. Não poderei aceder ao domínio da corrente dominante, estar lado a lado com o cinema feito no Ocidente, como todas as outras pessoas? Como me podem dizer que aquilo que tenho para contar só pode ser ouvido no meu gueto? Quando saem, os filmes europeus são filmes. Porque é que quando se trata de um filme africano o designam logo de “filme africano”. Não aceito que não me considerem igual a qualquer outra pessoa, só por ser de um determinado continente que se pensa povoado por selvagens. Se os meus filmes não são vistos nesses espaços dominantes, até agora controlados pelo Ocidente, significa que sou diferente e eu não quero ser excluída.

Ser uma realizadora, mulher, tem desafios acrescidos nesta indústria?
Estou farta de etiquetas: és africana, és mulher, és isto e aquilo. Sou apenas eu e faço filmes. O facto de ser mulher não muda nada. Trabalho numa industria dominada por homens? Sem dúvida. Isso é uma desvantagem? É, mas a verdade é que decidi torná-la numa vantagem. Todos estes presidentes que tenho entrevistado me subestimaram por ser mulher. Em vez de ficar ofendida com isso, provei-lhes que não o deveriam ter feito e no momento em que o percebem já é geralmente tarde, já falaram, já se abriram. 

*Esta entrevista foi realizada em parceria com o programa de Pós-colonialismos e Cidadania Global e o projecto de investigação Alice, promovidos pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

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