A destruição de uma identidade passa à tarde na TV
Espectáculo-sensação do Fringe em 2012, La Merda, de Cristian Ceresoli, chega este sábado a Almada. Em palco, uma actriz nua cospe um monólogo entre a raiva e a fragilidade, em luta contra “a ditadura suave” da vida contemporânea.
Silvia Gallerano é um corpo que fala. E fala ininterruptamente durante a hora que dura La Merda, texto de Cristian Ceresoli escrito num jacto de fluxo de consciência, numa queda livre até acabar esborrachado nos carris de uma linha férrea. Está integralmente nua o tempo todo, uma nudez que nada tem de erótica, apenas amplia a fragilidade e a raiva que, de forma alternada, possuem a actriz. La Merda é uma peça biliar, despejada para o papel a partir do diagnóstico feito por Ceresoli de que aquele corpo, sem roupas que o classifiquem ou definam desta ou daquela maneira, em branco para que todos se possam projectar nele, é o corpo de uma sociedade suicidária.
O autor italiano chama-lhe “uma tragédia humana”. Uma tragédia que mistura e confunde ideias enquanto avança, impulsionada por uma actriz que discorre a sua verborreia na luta por uma identidade que é uma identidade fabricada, composta à medida daquilo que se espera do figurino dos programas televisivos vespertinos – em Itália, de acordo; mas também no resto do mundo. Ceresoli partilha com o Ípsilon a imagem destas pessoas “constantemente a falar, que tentam ser alguém quando, na realidade, estão a tentar ser a imagem de quem queriam ser”. O fluxo de consciência da sua escrita, talvez mais ainda do que baseado neste dispositivo literário de que o italiano se diz admirador, vai atrás desta urgente e caótica incontinência verbal da televisão que preenche cada segundo das tardes a escarafunchar o mais possível na vida de anónimos, dispostos a tudo por uns minutos de atenção nacional. Um microfone e uma câmara à frente e não há limites para cada um tentar moldar-se diante dos outros, transformar-se em alguém que não existe. E o quanto esse processo pode, afinal, implicar a destruição da identidade. Daí também a nudez de Silvia. Ela será aquela que vemos, e não qualquer máscara com que tente enfeitar-se.
La Merda foi o espectáculo vencedor do festival Fringe em 2012, estreando-se em Portugal numa sessão única este sábado, 21 de Maio, no Teatro Joaquim Benite, em Almada. A crueza da peça – navegando entre a podridão da cultura de celebridades e dos mandamentos mediáticos, uma sociedade baseada em relações de poder e, ainda, a emergência do que Ceresoli descreve como uma nova forma de fascismo – coloca o foco sobre a voz e sobre o discurso, esquecendo tudo à volta. Um dispositivo que havia de justificar a comparação com Not I, monólogo de Samuel Beckett centrado numa boca que expele um discurso ainda mais torrencial e sinuoso.
Ceresoli, que se diz “apenas o autor”, não tem propriamente um passado no teatro. Nunca leu nem viu uma representação de Not I e, embora não hesite em taxar Beckett como “um génio”, prefere preservar, por enquanto, a sua ignorância em relação à peça do dramaturgo irlandês. Possivelmente por temer a comparação. A escrita de La Merda, reclama, terá sido mais determinada pela escrita musical do que pela teatral. A forma como as diferentes temáticas se relacionam, entrando umas pelas outras, será possivelmente herdeira da composição em contraponto desenvolvida por Johann Sebastian Bach, em que diferentes ideias podem coabitar o mesmo espaço sem ceder a um instinto canibalesco. “É muito importante não ficar apenas por uma ideia e torná-las todas vivas”, defende o dramaturgo.
Bach é, mais uma vez, assumido como referência quando Cristian diz pensar em Silvia como “um instrumento” para o qual escreveu. “Ela para mim é como Glenn Gould a tocar Bach”, compara. “[Com ela, a peça] torna-se algo muito diferente, ela recria algo a partir da partitura que escrevi; vejo a natureza desta minha escrita como algo para ser cantado ou interpretado ao vivo. É aí que o teatro, para mim, começa.” Não é por acaso que Ceresoli é “apenas o autor”. Apesar de algumas indicações cénicas que sugerem a nudez e as luzes muito intensas sobre a actriz, “quase a queimar o corpo”, tudo o resto a que assistimos em La Merda é uma construção de Silvia Gallerano, que se dirige a si mesma. Concluído o texto, e embora o projecto tenha sido sempre a dois – desde os tempos em que todos os apoios lhes foram recusados e o seu refúgio foi um antigo teatro ocupado que lhes permitiu estrear o espectáculo –, Cristian é pouco mais do que uma testemunha das reacções operadas por La Merda.
E as reacções fazem-se sempre sentir. O processo de transfiguração de Silvia, numa luta entre o humano e o inumano, leva-a até um ponto de animalidade. Um ser selvagem a rebelar-se, talvez prisioneiro de um corpo domesticado.
Pasolini como salsa
Na mesa-de-cabeceira de Cristian Ceresoli (todos os dias da sua vida, segundo nos diz), está sempre uma pilha de livros de Pier Paolo Pasolini. “É algo a que preciso de regressar de tempos a tempos – ler os livros e os artigos, ver os filmes… Acho que está em tudo quanto escrevo”, confessa. É uma confissão que só se arrisca a fazer diante de jornalistas ou públicos estrangeiros. “Pasolini”, queixa-se, “foi estragado, é sobreutilizado” em Itália. E socorre-se de uma expressão italiana, "essere come il prezzemolo", para dizer que está por todo o lado (da mesma maneira que a salsa, prezzemolo, na comida mediterrânica). Longe do escrutínio italiano, Ceresoli admite então que é movido pela mesma “procura de novas formas de expressão” que identifica em Pasolini, considerando-se também “alguém que luta para compreender o que pode ser mudado, o que fazer para estar vivo, para ser expresso como vigoroso e urgente”.
Ceresoli volta a Pasolini para o citar na ideia de que se vive hoje uma “ditadura mais perigosa e subtil, o tipo de ditadura a que chamava mais suave e mais doce, e que é muito perigosa porque é extremamente difícil reconhecê-la, percebê-la e observá-la”. Daí a tese de uma sociedade que se encaminha para o suicídio, chegando-se cada vez mais à frente, até cair para os carris do comboio. Apesar de associar La Merda a um questionamento de onde pára a liberdade, que diria desperdiçada numa submissão voluntária e (talvez) inconsciente a modelos sociais (de beleza, de poder, de valorização pessoal, etc.) que de tão presentes surgem como inevitabilidade da vida em colectivo e nunca como escolhas, Ceresoli garante que nada há de catastrofista no seu texto. “Dizemos isto com um grande amor por trás e uma grande esperança”, esclarece. “Não sou o único que luta ou tenta reagir. E podemos exprimir isto porque temos liberdade para o fazer.” E recua ligeiramente na última frase para uma micro-afinação: “liberdade suficiente”.