A cidade moribunda

Na semana passada, aludi aos efeitos devastadores do turismo, mas detive-me em cristalizações ideológicas, onde têm origem argumentos muito comuns que tanto servem para o criticar e recusar como para o atrair: os mitos culturais do enraizamento, da essencialidade e da autenticidade (tudo figuras do anti-cosmopolitismo e inimigas da cidade moderna). Para percebermos em toda a sua extensão a lógica e os efeitos do turismo, temos de olhar para a cidade onde eles foram levados ao extremo e que é tomada como paradigma ou laboratório do destino das cidades históricas: Veneza, essa “máquina para pensar” a própria ideia de cidade, como disse o arquitecto Manfredo Tafuri . Veneza, escreveu Tafuri nos anos 80 do século passado, “lança ao mundo da modernidade uma provocação insuportável”. Como sabemos, a derrota que continua a sofrer por tal provocação é gigantesca, e hoje ela pode ser descrita como um doente quase em estado terminal: uma cidade esvaziada pela monocultura turística, o que levou um grupo de cidadão a instalar numa dos seus campi (San Bartolomeo), junto a uma farmácia, um contador que assinala todos os dias o número de habitantes. Em 2014, o grande historiador de arte Salvatore Settis, num livro intitulado Se Venezia muore (Einaudi), fornece essa contabilidade: cerca de 56 mil habitantes. No século XVI chegou a ser o triplo. Mas se tivermos em conta uma Veneza alargada para além do centro histórico, os números são ainda mais dramáticos: a população desceu 100 mil habitantes de 1971 a 2011. Pelas estradas e canais de Veneza, informa-nos Settis, circulam oito milhões de turistas por ano, 75% dos quais só fica por um dia (é o chamado “turismo toca-e-foge”), o que significa que por cada pessoa que vive em Veneza existem mais ou menos 600 visitantes fugazes. À medida que a cidade se esvazia de habitantes,  caem sobre ela os ricos e os famosos, que compram por preços altíssimos uma casa – um status symbol – para usar meia dúzia de vezes por ano. Evidentemente, esta especulação repele os venezianos e hoje a cidade já não é capaz de gerar senão bed & breakfast, restaurantes, albergues, agências imobiliárias e lojas de produtos “típicos”. O último cinema fechou há quase vinte anos e o Teatro Goldoni lá continua porque o Goldoni é uma marca veneziana, como as máscaras de Carnaval. Os venezianos são uns seres melancólicos e impotentes, às vezes enraivecidos, que já não sabem como reivindicar o “direito à cidade” (esse direito que Henri Lefebvre, em 1968, consagrou num livro com esse título) porque sentem que não podem fazer outra coisa senão mover a máquina que os espolia e afasta. A comparação de Veneza com a Disneylândia tornou-se tão frequente que em 2006 o jornal inglês Observer lançou uma provocação: se o futuro de Veneza é apenas o turismo, melhor é arrendá-la à Disney Corporation, que assegurará uma gestão mais eficaz do que a administração autárquica. Na análise de Settis, a moribunda Veneza continua a ser uma “máquina para pensar” as cidades históricas: para pensar o destino trágico a que estão condenadas. Mesmo quando têm um corpo menos mórbido que o de Veneza e, por isso, conseguem disfarçar o seu estado de estertor. Mas Settis aponta também as suas armas contra os próprios arquitectos e urbanistas, lembrando que já Tafuri tinha apontado para o “cadáver de Veneza” como resultado do assalto pelos turistas, mas também por obra da “veleidade de aqrquitectos indignos deste nome”. Sabemos muito bem a que se referia Tafuri: há um álibi cultural e uma legitimação estética (e às vezes política) que desresponsabiliza os arquitectos e os incita ao crime.

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