Anjos, demónios, manifestos e mentiras no Cumplicidades

O primeiro fim-de-semana do festival oferece o palco a dois espectáculos: Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão convocam o Bem e o Mal, Maurícia Neves segue as pistas do Dogma 95.

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WE WILL USE SMOKE MACHINES, de Maurícia Neves JOÃO CATARINO
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WE WILL USE SMOKE MACHINES, de Maurícia Neves JOÃO CATARINO
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O Céu É Apenas Um Disfarce Azul do Inferno, de Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão SILVANA TORRINHA
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O Céu É Apenas Um Disfarce Azul do Inferno, de Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão SILVANA TORRINHA

A encomenda original do último Circular – Festival de Artes Performativas a Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão trazia um pedido apenso: se possível, a peça a estrear em Outubro passado deveria relacionar-se de alguma maneira com Vila do Conde. Em visita a vários espaços, perceberam na Casa Museu José Régio, decorada com objectos de arte sacra e arte popular recolhidos pelo escritor ao longo da vida, um primeiro momento de fascínio. “A casa está pejada de cristos”, diz ao PÚBLICO a coreógrafa e bailarina de O Céu É Apenas Um Disfarce Azul do Inferno, espectáculo que agora abre o Cumplicidades – festival de dança contemporânea de Lisboa, co-produtor da peça.

Esse ambiente da casa de Régio que Cristóvão descreve como “tortuoso e pesado” juntou-se ao livro Poemas de Deus e do Diabo e ao poema Cântico Negro, criando pontes que os dois seguiram até chegarem a Teixeira de Pascoaes, contemporâneo de Régio, socorrendo-se de um seu poema para baptizar a nova peça. Aí chegados, continuaram depois a desfiar a literatura portuguesa em busca de alusões ao céu e ao inferno, tropeçando de propósito no episódio A Ilha dos Amores, d’Os Lusíadas de Camões, em História do Futuro, do Padre António Vieira, na dicotomia entre a poesia erótica, satírica e burlesca de Bocage e a sua produção romântica, ou no poema Vi Jesus Cristo Descer à Terra, de Pessoa/Alberto Caeiro. As referências foram-se amontoando e sugerindo forças contraditórias e representações de luta. Pegando na deixa, Joana e Hugo pesquisaram e estudaram imagens de crianças-soldado ou miúdos tailandeses a praticar muay thai.

Foi com todo este mapa que os dois partiram para o estúdio (acompanhados dos intérpretes André Araújo e Xana Novais) a fim de descobrir que gestos surgiam da recorrência de ideias como a queda (ao inferno), a subida e a descida constantes que apanharam do mito de Sísifo algures pelo caminho, a luta entre contrários, a ideia de que a violência pode comportar beleza e de que Bem e Mal frequentemente se confundem, dinamitando a simplificação maniqueísta do mundo e a sua divisão entre figuras celestiais vestidas de branco, e os outros contaminados pelo pecado e pela possessão demoníaca trajando o negro das sombras. Tudo isto estará em palco entre 4 e 6 de Março, no Espaço Alkantara.

Se Joana e Hugo identificam em Régio e Pascoaes uma “apropriação da mitologia católica que implica a ideia de punição e purgatório”, vislumbram também uma reflexão pagã que nega que a salvação traga sempre a culpa pela trela. “A salvação”, concretiza von Mayer, “é prazerosa, é um espaço de libertação”. “Não se faz por expiação”, acrescenta Cristóvão. Para lá do palco, o projecto tem uma metade teórica que culminará num congresso com oradores ligados à Filosofia portuguesa que dissertarão sobre este mesmo material de pesquisa de que O Céu… se serve em abundância. Mas em cena céu e inferno empurram os bailarinos no sentido do sofrimento, da agressividade, da violência e do esforço físico. Até ao ponto em que tudo isto, de súbito, desemboca no prazer. O ponto em que os opostos, embalados por uma ritualística bateria indutora de transe, se diluem um no outro.

À boleia do Dogma 95
Logo em seguida, a 5 e 6, no Negócio, será a vez de Maurícia Neves levar para palco as entranhas de um espectáculo, inspirada pelo manifesto Dogma 95, de Lars von Trier e Thomas Vinterberg. De acordo com os dez mandamentos do Dogma 95, também a coreógrafa e bailarina tentou resistir a que o seu nome aparecesse como criadora do espectáculo. Mas ficou-se pela cedência do poder absoluto nas suas criações. WE WILL USE SMOKE MACHINES (assim mesmo, em maiúsculas, por reclamar a pompa de uma promessa política) enche o palco de material técnico e, desde o início, assemelha-se a uma peça em construção, ao esboço de um espectáculo que há-de ser, algo que soçobra da ideia original da coreógrafa de convidar o público a acompanhar, uma vez por mês, uma obra a ganhar vida.

Assim, citando o manifesto dos realizadores dinamarqueses como rejeição do artifício, bailarina, músico, videasta, artista plástica e fotógrafo reúnem-se em palco misturando manifestos pessoais com as ideias centrais da proposta: a alusão crítica à indústria, ao capitalismo, à promessa política e à vampirização pelos media. Quando Maurícia toma o palco, entregando-se a um lamento fado-operático rodeada de cabos que habitualmente costumam estar cobertos para deixar o palco limpo, uma câmara segue-a para se banquetear na sua miséria, até que ela se farta da ladainha e passa ao ataque. Como se a intérprete se cansasse do papel que representa e apelasse a que cada um, enquanto indivíduo, se sobreponha à sua função em palco.

Não sendo dança, nem instalação, nem concerto, ou talvez sendo tudo isto em simultâneo, a peça chama as máquinas de fumo para o título precisamente por mascararem a realidade e encenarem uma ficção. Daí que o título encerre, desde logo, uma mentira. Não há máquinas de fumo à vista, apenas um vaporizador, que realça o que Maurícia Neves parece querer sublinhar a cada segundo – a sua procura de verdade assenta na admissão de que impera a mentira.

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