Manuel Göttsching, o visionário das coisas boas que nunca acabam

Em 1981, na véspera de uma viagem, o multi-instrumentista alemão resolveu compor uma peça de 60 minutos para ouvir no avião. Trinta e cinco anos depois o disco E2-E4 tornou-se mítico, influenciando gerações. A 4 de Março, em Coimbra, há uma ocasião rara de o ouvir em palco.

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A 12 de Dezembro de 1981, na véspera de voar de Berlim para Hamburgo, o músico e compositor alemão Manuel Göttsching, hoje com 63 anos, enfiou-se no seu estúdio para registar música para ouvir durante a viagem no walkman. Trinta e cinco anos depois o efeito da ideia registada nessa noite ainda se faz sentir. O que daí saiu foi E2-E4, longa peça instrumental de 60 minutos que ouvida hoje continua a ser uma impressionante abanadela nos sentidos. Quase toda a electrónica de dança feita posteriormente, do house às correntes mais ambientais, das vagas de recuperação do pós-punk ao neo-disco (de Ricardo Villalobos a The Field, de Lindstrom a LCD Soundsystem, de Ariel Pink a Oneohtrix Point Never), reflecte influências dessa composição.

E no entanto continua um objecto singular, uma sessão de transe consumada a partir de elementos repetitivos, numa panorâmica futurista onde nada parece suceder, mas onde tudo o que é essencial acontece, para deleite de quem embarca na viagem.

“Ao longo dos anos já fui confrontado com as mais diversas teorias sobre essa composição, desde que teria demorado anos a prepará-la, até que estaria sob efeitos de estupefacientes, logo eu que nunca fui de drogas”, diz-nos. “Claro que aquela peça não surgiu por acaso – tinha aquela ideia e um percurso de anos para trás – mas é como se as pessoas recusassem que tudo saiu perfeito naquela noite, de uma só vez, sem distorções, fluindo, vogando, durante uma hora. Mas a verdade é que aconteceu.”

Aconteceu: E2-E4 tornou-se numa das obras mais influentes, citadas e alvo de recriações da música popular e Manuel Göttsching carrega hoje esse legado. Raramente apresenta essa peça na íntegra ao vivo, mas a 4 de Março, na sua primeira apresentação em Portugal, “depois de muitos convites ao longo dos anos”, vai fazê-lo. Será em Coimbra, no Teatro Académico Gil Vicente, no âmbito do 30º Aniversário da Rádio Universidade de Coimbra, com 1ª parte do novo projecto de Luís Fernandes (Peixe:Avião, Astroboy), intitulado Landforms.  

O concerto terá duas partes. A primeira apenas com teclados, sequenciadores e sintetizadores. A segunda, também com guitarra. “Quando gravei a versão original utilizei sintetizadores analógicos e uma panóplia de máquinas que seriam hoje impossíveis de transportar para tocar ao vivo”, diz, rindo-se, “portanto dou-me por feliz por poder utilizar hoje o computador e um tipo de instrumentos mais leves, que me permitem reproduzir velhos e novos sons. Mas, na essência, é a versão original que apresento. Durante muitos anos não toquei essa composição ao vivo por causa das questões técnicas, mas em 2005 fi-lo pela primeira vez no Japão e desde então toco-a em ocasiões muito especiais. Toquei-a para aí dez vezes, não mais do que isso.”

O que aconteceu naquela noite de 1981 surgiu num momento de enlevo, de procura improvisada do sublime, ou como ele diz: “foi como se quisesse que as coisas boas nunca mais acabassem!” Mas não foi um acaso. Há uma cronologia que antecipou aquele momento. “Aprendi guitarra clássica na adolescência e a minha mãe deu-me a ouvir ópera ou jazz”, começa por dizer, “depois fui ouvindo soul, blues e rock. E mais tarde minimalismo, especialmente Terry Riley, pela forma como ele encontrou o seu próprio estilo de tocar piano ou teclas, com ecos e recorrendo a estruturas repetitivas – que é o que acabo por fazer com o meu estilo de tocar guitarra – e Steve Reich também, embora mais pelas noções rítmicas, com influências da música africana.”

Só queriam mudar a Alemanha
Até 1974 esteve concentrado no seu grupo, os Ash Ra Temple. Depois iniciou-se a solo. “O meu primeiro álbum, Inventions For Electric Guitar, de 1975, ainda era muito marcado pela guitarra, mas o segundo, New Age Of Earth, de 1976, foi composto para teclados e comecei a adicionar instrumentos electrónicos. Depois fui trabalhando cada vez mais com sintetizadores, sequenciadores e caixas-de-ritmo e comecei a fazer música experimental para eventos de moda, apenas com instrumentos electrónicos. Essa foi a preparação para E2-E4.”

No início não imaginou que a composição que havia criado, improvisando com sintetizadores e guitarra, haveria de ser editada em disco. “Andava à procura de qualquer coisa de mais orquestral, com vozes, não era bem aquilo que andava a pesquisar, mas depois fui ouvindo o que havia feito naquela noite e fui ganhando consciência que fazia sentido editar aquela peça daquela forma, sem alterações, cortes ou interrupções.” Viria a acontecer três anos mais tarde, em 1984. Na época as reacções não foram boas. O reconhecimento foi lento.

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A sua geração queria reabilitar o que significava ser alemão na Europa do pós-guerra

Mas o tempo deu-lhe razão. Em 1989, a peça que havia sido inspirada em compositores minimalistas como Riley, Reich ou Philip Glass, haveria de transformar-se num clássico pós-rave das pistas de dança, graças a uma recriação dos italianos Sueño Latino. “Quando me disseram que o meu tema andava a ser dançado nas pistas não queria acreditar”, ri-se, “não conseguia imaginar aquela peça minimalista, de ritmo subtil, sem graves, que podia ser tocada por uma orquestra, a ser dançada.”

A forma como as sequências rítmicas, as linhas sintéticas e a sonoridade transparente da guitarra interagem, acabam por modelar o som, edificando uma longa mantra sonora que parece nunca findar. Tal como nas estruturas minimalistas de Riley ou Reich, diferentes elementos estabelecem uma relação complexa entre si, com camadas de texturas em movimento, até ao infinito.

Tantos anos depois E2-E4 já foi alvo de várias reedições, estando prevista mais uma para os próximos meses por ocasião do 35º aniversário da sua criação, através da editora do músico, a MG.ART. Para além da editora, das reedições, dos convites para compor para cinema (em 1975 compôs a banda-sonora de Le Berceau de Cristal do francês Philippe Garrel, com Nico como protagonista, e em 2005 musicou um filme de Murnau com uma orquestra), ou da direcção da CV Filmes, companhia de produção de cinema – a mulher é a realizadora Ilona Ziok – tem sido também requisitado por causa dos Ash Ra Tempel, a banda de rock experimental que formou no final dos anos 1960 com Klaus Schulze.

Dir-se-ia que, em grupo, ou a solo, a sua música nunca foi tão actual. “É incrível, não é?”, exclama, tentando explicar porque é que grupos alemães dos anos 1960 e 1970 (Neu!, Can, Cluster, Faust, Harmonia, Tangerine Dream ou Kraftwerk) ganharam nova pertinência nas duas últimas décadas. “Aquilo que as pessoas hoje chamam krautrock, que vai do final dos anos 1960 até meio dos anos 1970, foi um período muito criativo. É preciso recordar que os nazis haviam destruído a Alemanha cultural. Os músicos, artistas ou escritores tinham sido mortos ou haviam emigrado. A minha geração, nos anos 60, desejava uma nova Alemanha, uma identidade renovada, não renegando influências da América ou de Inglaterra, mas apostando em qualquer coisa nossa. Muitas coisas criativas surgiram então. É natural que esse legado esteja vivo.”

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E2-E4 tornou-se obra influente, citadas e alvo de recriações. Manuel Göttsching raramente apresenta a peça na íntegra ao vivo, mas a 4 de Março, na sua primeira apresentação em Portugal, vai fazê-lo – Coimbra, Teatro Académico Gil Vicente

O ano passado foi convidado para recriar ao vivo os três primeiros álbuns dos Ash Ra Tempel (o homónimo de estreia de 1971, e Schwingungen e Seven Up de 1972) por um festival australiano, do qual resultaria um concerto especial. “Deu-me imenso prazer tocar com uma formação de músicos nos seus trinta anos, entre eles Ariel Pink, porque deu para perceber que aquela música havia sido realmente importante para eles e isso é muito gratificante.”  

O que é curioso, expõe, é que a música alemã que as novas gerações agora elogiam, era feita de forma pouco profissional, com alguma ingenuidade à mistura. “Não havia uma indústria. Não tínhamos promotores, agentes ou managers. Existe até quem defenda que aquele tipo de música nunca poderia ter acontecido nos Estados Unidos ou em Inglaterra porque os promotores recusar-se-iam a promove-la o que faz sentido”, ri-se ele. “Alguma daquela música era verdadeiramente doida.”

E continua. “Algumas das primeiras coisas dos Ash Ra Temple poderiam até ser influenciadas pelos Stooges de Iggy Pop, ou pelos Pink Floyd, mas eramos mais livres do que eles. Podíamos fazer o que nos dava na gana. E com essa predisposição aconteceram coisas incríveis. Mas não foi um movimento comercial. Não havia compromissos. Só queríamos mudar a Alemanha. E nesse sentido foi importante para o país.”

A sua geração queria reabilitar o que significava ser alemão na Europa do pós-guerra. Através da música recusavam em simultâneo o passado fascista alemão e a cultura pop americana, sinalizando um futuro singular dominado pela tecnologia. E Manuel Göttsching estava lá, traçando as ligações escondidas entre o experimentalismo rock, a produção electrónica e o minimalismo clássico, procurando criar estruturas sonoras que gerassem transcendência, para que as coisas boas nunca acabem.

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