É a falta de testosterona

Desde que o dr. Lacan, numa conferência em Milão, corria o ano de 1973, disse que as mulheres não existem (ele disse “A mulher”, acentuando o A maiúsculo, mas o auditório ouviu “as mulheres”) nunca mais tinha surgido um homem verdadeiramente homem para dizer que o mulherio, por mais que insista em existir e conquistar terreno, contra as leis da natureza e os bons exemplos da história, será sempre o signo de uma Falta. Isto do mulherio não é como a matemática, menos por menos não dá mais. O homem verdadeiramente homem que sucede ao dr. Lacan, mas ultrapassando-o pelo lado da natureza e da biologia, chama-se Miguel Sousa Tavares. Foi ele que proferiu a sentença da Falta, já conhecida nos círculos especializados como a tese do ça manque (tem que se dizer em francês porque o segredo está todo no ça). A tese foi formulada no Expresso e, por acaso, envolve o PÚBLICO enquanto sintoma da falha do ça.

Manifestando-se contra a lei da adopção de crianças por casais do mesmo sexo, Miguel Sousa Tavares estabeleceu uma subtilíssima equivalência entre a posição dos “bem-pensantes” — uma expressão usada pelos que pensam bem para designar os que pensam mal ou mal pensam — e a composição da redacção do jornal PÚBLICO, cito, “ele próprio um exemplar de co-adopção editorial, tal a sua manifesta falta de testerona [sic] na Redacção”. “Testerona”? Um gajo que tem tanta que ela lhe sobe ao cérebro, mal vê uma palavra terminada em “ona” começa logo a comer-lhe as sílabas e já não diz coisa com coisa (quod est demonstrandum) e muito menos a palavra “testosterona”.

A questão miqueliana do ça manque é muito interessante e por isso estou aqui a divulgá-la sem outros intuitos. Apesar de o fazer no jornal que serviu ao Miguel para verificar a sua hipótese científica, não pertenço à redacção, portanto não participo da Falta colectiva, e nenhum vínculo profissional me habilita a falar em nome deste jornal. Em todo o caso, registei o sentido da Falta que se abre (oh, como as palavras são perigosas!) quando há mulheres a mais. E como se faz a medição que nos avisa dessa anomalia? Comparando com as que, em lugares equivalentes, existiam quando vigorava a normalidade; e, pelo método miqueliano, avaliando o teor de pensamento que se produz onde elas dominam. Sempre baixo, obviamente. Onde, acima, utilizei a palavra “mulherio”, estava a traduzir em linguagem de leigos marialvas o pensamento penetrante (como evitar esta palavra?) de Miguel Sousa Tavares que se revela no ça manque. É como dizer pila — ou uma das suas variantes pornográficas, que um homem bem-educado nunca ousaria escrever num jornal cuja redacção é um gineceu — em vez de phallus. Mas nem sempre é fácil manter a elevação e, como vimos, até o nosso apurado cientista tem um sobressalto quando se defronta com a palavra “testosterona”. É o significante, estúpido, diria o dr. Lacan. Mas num texto em que, da redacção do PÚBLICO até ao arranjinho social das adopções por imposição de uma “’vanguarda’ leninista dos costumes”, o pressuposto é o da irredutibilidade biológica, mais depressa a grande Falta do Miguel — entenda-se: o Miguel autor da grande Falta — é devedora do positivismo do século XIX do que desse louco parisiense que enfeitiçava auditórios com jogos de palavras. Seja como for, a requintada teoria da Falta torna-se vulnerável por causa da metáfora da testosterona. Não é que as metáforas não sejam utilizadas na ciência, mas o autor do ça manque corre o risco de lhe apontarem com armas freudianas mais poderosas que as suas armas de caçador: o medo da castração e a angústia que a feminilidade lhe suscita. 

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