Uma miragem de rock dinamitado, eis os Peixe:Avião

O quinteto de Braga estreia ao vivo, este sábado, no Rivoli Peso Morto, disco de espanto que os confirma cada vez mais como grupo instrumental com voz que constrói a sua música a partir dos escombros do rock. A solo, Luís Fernandes aventura-se enquanto Landforms.

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Os Peixe:Avião soam hoje a um grupo instrumental que, por acidente, tem na voz um dos instrumentos

Após a gravação de Madrugada, em 2010, os Peixe:Avião tropeçaram numa armadilha de desilusão e de vazio. Tinham apostado convictamente num álbum complexo, em que as canções eram testadas de uma forma cerebral, tinham gizado planos grandiosos que acabaram por desabar aos poucos, nem sequer com estrondo. Viam-se caídos com discrição, sem aparato, sem especial atenção por cauda disso. “Sentimos que aquilo tudo que tínhamos feito se calhar não tinha valido a pena ou obtido o resultado que queríamos”, admite Luís Fernandes. O guitarrista e homem das electrónicas da banda de Braga refere-se a esse período pós-Madrugada como “uma fase de crise de identidade”, depois de uma difícil transposição do álbum para o palco – de tão trabalhado que fora em termos de produção –, em que o quinteto de estúdio parecia inconciliável com o quinteto de palco e em que alguns temas acabaram abandonados pela frustração em não conseguir ressuscitá-los em concerto.

Em vez de lhes apontar um próximo passo óbvio, Madrugada esgotara-os e deixara-os perdidos enquanto banda. Era claro que o processo que tinham seguido nos dois primeiros álbuns os tinha levado até um beco sem saída e o ponto de partir do qual poderiam reerguer-se não estava à vista. De repente, era como se só houve caminho para trás. “Sentimos que tínhamos seguido um caminho que não era o mais condizente com a nossa identidade, enquanto grupo e enquanto cinco elementos da banda”, acrescenta Luís. Quando começaram a encontrar-se na sala de ensaios para compor, contrariando o método mais individual e solitário que havia vigorado até então, em vez de desbloquearem a situação apenas pareciam mais enredados em incertezas e durante meses os radares não detectaram qualquer sinal de progresso. Estavam apenas mais certos de estarem perante um problema. “Ainda andámos um bocado às cabeçadas uns com os outros”, lembra o baixista José Figueiredo.

A sala de ensaio tinha ocupado até então um lugar literal na vida do grupo. Era usada como episódico espaço de preparação de concertos, mas estava totalmente esvaziada de uma função criativa. “Achava que era inútil ir para uma sala de ensaio sem qualquer tipo de ideia pré-concebida, porque íamos andar a navegar num mar de incertezas. E nunca pensei que fosse uma opção sensata compor sequências de acordes ou esse tipo de coisas nesse contexto”, continua Luís. Mas esse processo colectivo, que poderia apenas cavar ainda mais a crise colectiva, acabou por, à custa de muita insistência, impor um novo modelo de trabalho ao obrigar os Peixe:Avião a livrarem-se de um excesso de composição cirúrgica à mesa do computador, tornando-a menos fria e mais viva, ao colocar os cinco dentro de uma sala, sem ideias já pensadas, testadas, protegidas. A chave seria essa – entregarem-se ao desconhecido e esperarem que, mais tarde ou mais cedo, este lhes devolvesse uma resposta.

“Houve alguma angústia porque demorámos a encontrar qualquer coisa. Depois, estranhamente”, recorda o baixista, “a partir do momento em que desbloqueámos, as músicas começaram a sair umas atrás das outras.” Curiosamente, foi no decurso desse processo colectivo que a sonoridade dos Peixe:Avião começou a ser atravessada de forma mais incisiva pela experimentação electrónica, fruto não apenas das derivas solitárias de Luís Fernandes enquanto Astroboy, mas também em consequência da emergência de Third, álbum dos Portishead, como amor comum e matriz partilhada. Tudo junto, eis que estavam diante de uma espécie de renascimento do grupo com o álbum homónimo de 2013.

De uma relação de crise com um potencial implosivo, que facilmente teria conduzido a alguém a bater com a porta, a zangas de alimentar rancor até à cova, a uma indefinição artística que os tornaria uma amálgama de ideias em conflito ou a uma periclitante existência que apenas seria bem-sucedida em adiar o fim a curto prazo, resultaria afinal uma nova unidade e um pouco frequente desvio experimentalista com a banda a avançar em absoluta harmonia. A diferença com o passado era um tanto processual – enquanto a experimentação antes residia numa tentativa de complexificação instrumental numa prova pública de qualidades criativas, agora a via era de uma simplificação em que valia mais a exploração do som trabalhado em conjunto. As canções tornaram-se menos importantes. Deixou de existir a preocupação em vergá-las, passou antes a impor-se aquilo que no actual Peso Morto se apresenta como uma evidência atraente: os Peixe:Avião, que começaram por se destacar soando a um possível correspondente local dos Radiohead, graças tanto à instrumentação quanto às vocalizações agudas sopradas por Ronaldo Fonseca, soam hoje a um grupo instrumental que, por acidente, tem na voz um dos instrumentos. As provas serão distribuídas sábado no Rivoli (Porto), a 18 no Lux (Lisboa) e a 20 de Fevereiro no Theatro Circo (Braga).

Informático ou músico
Aquilo que antes pesava sobre as canções é agora uma matéria mais densa e abstracta, mas sobre a qual não impende essa gravidade de uma música esculpida com demasiado cérebro à mistura. A voz de Ronaldo, concorda Luís Fernandes, soa agora a algo que podia ser “um sintetizador ou uma guitarra cantados”. É difícil não pensar isso mesmo num tema como Miragem, em que as palavras se equilibram numa só nota, retirando de cena sempre que as guitarras tomam balanço e abafam tudo à volta em acessos de exuberância. Tanto Luís como José acreditam, aliás, que Ronaldo não mostraria o menor incómodo se a banda decidisse avançar para um álbum exclusivamente instrumental. “Ele sente-se bastante menos confortável sendo uma espécie de frontman”, opina o guitarrista. “Ele não é talhado para isso e nos últimos anos tem mostrado mais entusiasmo e motivação por tocar sintetizador ou por fazer algo diferente com a voz do que propriamente por cantar.”

Há um indício daquilo a que poderia soar esse tal disco dos Peixe:Avião instrumentais em Fénix, tema composto por Luís Fernandes num raríssimo sintetizador modular Synton Fenix (existem 50 em todo o mundo), deixado à sua guarda durante seis meses pelo ex-Spacemen 3 Pete Kember, depois de uma residência do músico no GNRation, em Braga. É também esse sintetizador que está na base de Decay, álbum com que Luís passa a adoptar o alter-ego electrónico a solo Landforms, reformando o anterior Astroboy – decisão tomada sobretudo pela crescente aversão a uma designação que lhe soava insustentavelmente infantil.

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Montado a partir do registo escrupuloso de uma série de experiências livres com sintetizadores modulares, Decay ilustra na perfeição a metamorfose de Luís Fernandes enquanto criador – “às vezes sinto-me até mais um informático do que um músico porque as melhoras ideias têm que ver com técnicas que vão gerar um resultado sonoro mais interessnate”, comenta. Depois de anos a pensar a construção de uma canção a partir da experiência como guitarrista, em que o registo da ideia era o fim do processo, a fixação de uma progressão de acordes ou de uma melodia a que tinha chegado, a familiaridade com a electrónica levou a que Luís passasse a gravar horas e horas de experiências sem rede, dedicando-se depois a editar e montar pequenas parcelas.

Entre a beleza difusa e a turbulência espectral, Decay avança numa acumulação de texturas que transparece, em parte, na abordagem da guitarra que Luís actualmente desenvolve nos Peixe:Avião. “Obviamente ainda toco de uma forma convencional porque alguns temas assim o pedem, mas a maior parte das guitarras que faço são coisas muito texturais”, reflecte enquanto faz as contas. “Acho que há dois discos que não faço um acorde”. Pés em Falso, tema final do álbum magnífico que é Peso Morto, apresenta-se como exemplo perfeito disso mesmo, da transformação que é possível obrar dentro dos limites da pop por parte de cinco tipos que, numa lucidez de autodiagnóstico, perceberam que não lhes estava no sangue serem “uma banda de boas canções” e decidiram enveredar por um caminho mais sinuoso. Quando se fala de boas canções, aliás, é apenas no sentido de canções direitas, certinhas, polidas até não oferecerem resistência. Com os Peixe:Avião as canções nascem belissimamente tortas, imperfeitas, arredias.

A atenção à exploração sonora descortina-se também num tema baptizado precisamente como Torto, construído a partir da gravação e posterior loop do som captado numa coluna estragada da sala de ensaios. Essa bebedeira colectiva em torno da electrónica leva a que o palco dos Peixe:Avião esteja sobrepovoado de sintetizadores – os guitarristas dividem-se entre cordas e teclas, o baixista trabalha e grava cada vez mais baixos sintetizados, a voz é frequentemente filtrada por processadores que “revelam não haver grandes preocupações com a inteligibilidade das letras” e até a bateria está artilhada com vários microfones ligados a uma mesa de mistura que processam o som e o enviam para um amplificador. Apesar desta capa electrónica, a intensidade do rock continua presente. Mas é como se esta música fosse o que restasse do rock depois de dinamitado e tentado reconstruir a partir de escombros. É rock, se quisermos, enquanto miragem ou extraordinária memória longínqua e inacabada.

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