De Tijuana à Cisjordânia, os limites da representação

O mundo está a mudar, e a Galiza também. Pelo segundo ano, o Escenas do Cambio – Festival de Inverno de Teatro, Danza e Arte en Acción força uma região periférica e conservadora a acertar a sua agenda com a da criação contemporânea, lá onde ela se mostra mais política – Portugal incluído.

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Olhando para Gabino Rodríguez (Durango, 1983) e para Luisa Pardo (Xalapa, 1983), para a maneira como ele empoleira uma action figure de PVC na chávena de café con leche enquanto ela ginga efusivamente na cadeira do pequeno-almoço a descrever bastante graficamente a ópera electrónica que estão a montar no Texas sobre outro super-herói mexicano (Pancho Villa from a Safe Distance, assim se chamará), parece impossível que tenham estado no inferno e sobrevivido para contar.

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Olhando para Gabino Rodríguez (Durango, 1983) e para Luisa Pardo (Xalapa, 1983), para a maneira como ele empoleira uma action figure de PVC na chávena de café con leche enquanto ela ginga efusivamente na cadeira do pequeno-almoço a descrever bastante graficamente a ópera electrónica que estão a montar no Texas sobre outro super-herói mexicano (Pancho Villa from a Safe Distance, assim se chamará), parece impossível que tenham estado no inferno e sobrevivido para contar.

O inferno é o México e, mais impossível ainda, Gabino Rodríguez e Luisa Pardo vivem para o contar desde que, em 2003, fundaram o grupo de teatro Lagartijas Tiradas al Sol. Precisavam de um mundo com o qual pudessem “estar de acordo” e fartaram-se de tentar encontra-lo cá fora, na vida real  tal como ela decorre alegremente em Veracruz, o estado onde Luisa Pardo nasceu e onde crescem não só flores bonitas como valas comuns com dezenas de cadáveres, ou em Tijuana, a cidade onde Gabino (aliás Santiago) se fez passar por operário numa maquiladora e tentou viver seis meses com o salário mínimo (3,5€ euros por dia) mas só aguentou cinco (tornaram-se insuportáveis as dores nas costas e o medo de ser comido vivo por um cão ou espancado até à morte, business as usual no único bairro onde conseguiu alugar um quarto).

O México é esta catástrofe nada natural desde que o conhecem, diz Luisa Pardo ao PÚBLICO na cantina do Museo Centro Gaiás de Santiago de Compostela, onde desde quinta-feira (e até ao próximo dia 13) decorre a segunda edição do Escenas do Cambio – Festival de Inverno de Teatro, Danza e Arte en Acción, que as Lagartijas Tiradas al Sol abriram com a estreia mundial de Tijuana, primeiro capítulo do projecto La Democracia en Mexico 1965-2015; o segundo, a conferência Veracruz, nos estamos deforestando o como extrañar Xalapa, estreou-se um dia depois, e outras dores se tornaram então insuportáveis, porque Luisa quis desenterrar os seus mortos para enterrar “os filhos da puta” aparentemente imortais que os mataram (a começar por um governador em funções e por outro que entretanto se tornou cônsul em Barcelona), e assim roubou a paz a uma plateia inteira.

Tudo de família, as saudades de Xalapa, apesar da podridão e dos funerais, e a necessidade de contar as coisas como foram, ou como podem ter sido (até porque os jornalistas vão escasseando: desde 2000, 16 foram assassinados, quatro estão dados como desaparecidos, 37 deixaram o estado na sequência de ameaças): “É verdade que o Gabino é filho de uma antropóloga e eu sou filha de uma historiadora, e que talvez tenhamos herdado esta forma de aprender o mundo e de o questionar. E também é verdade que o nosso país vive em crise perpétua: nos anos 80 o México era um desastre, e continua a ser um desastre. É nosso dever como artistas e como cidadãos perceber como se chegou aqui.”

Eis então Luisa Pardo a recortar jornais, a gravar depoimentos sob anonimato e a reivindicar o teatro como lugar idóneo para reconstituir um crime (o assassinato da produtora cultural e activista Nadia Vera e do fotojornalista Rubén Espinosa, a 31 de Julho do ano passado) e, a montante dele, todo o contexto de delinquência oficial que o permitiu. E eis Gabino Rodríguez a pôr uma peruca e um bigode falso antes de se meter num avião em direcção a Tijuana para ser Santiago Ramírez e viver uma vida que não é a dele, uma vida de ficção apesar de toda a realidade do despertador sempre às 5h35, das 1253 peças de roupa embaladas por cada tarde de trabalho, dos domingos em que se sente tão cansado que passa o dia estendido na cama, e das descobertas que ficam entre ele e as páginas do diário: “Não ter dinheiro é como estar nu, é como perder a mãe na infância. Não me queixo. Um colega da fábrica ganha o mesmo que eu e tem filhos.”

Mudar de narrador
Até hoje, nenhum dos sucessivos espectáculos em que é a palavra das Lagartijas contra a verdade oficial pôde ser visto em Portugal, o contexto em que Pablo Fidalgo Lareo mais declaradamente se inspirou para construir o Escenas do Cambio. Cenas da mudança em Santiago de Compostela, para abusarmos do nome do festival: será aqui, no coração simbólico de uma região periférica e conservadora, que o modo de fazer assumidamente comprometido da companhia mexicana se cruzará pela primeira vez (talvez descubram que foram separados à nascença) com outro caso exemplar do teatro como minucioso trabalho documental de reconstituição do passado, Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, em que Joana Craveiro vai dos primeiros sinais de repressão do Estado Novo até ao fim de festa que foi o PREC em apenas quatro horas e meia (amanhã, às 18h30).

Há semelhanças, e não são só de método (a investigação pura e dura), formato (a conferência-performance) e posicionamento (à esquerda) – tal como no Museu de Joana Craveiro, também nos espectáculos das Lagartijas a ficção é entendida como uma via alternativa para chegar à verdade (“Porque parece mentira, a verdade nunca se sabe” / “A verdade também se inventa”, lê-se no final de Tijuana) e a história colectiva cruza-se com a história pessoal. Do geral para o particular em três exemplos: Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán, versão alternativa da vida e da obra do Partido Revolucionário Institucional, que governou ininterruptamente o México entre 1929 e 2000; El Rumor del Incendio, crónica da dissidência no México dos anos 60 a partir do álbum de família de Luisa, cuja mãe foi guerrilheira; Montserrat, a aventura individual de Gabino para contrariar a narrativa oficial de que a mãe morreu quando ele tinha seis anos.

Inveteradamente teatral, isso de querer instalar uma realidade alternativa, e ao mesmo tempo inveteradamente político: “Não queremos corrigir a História, só mudar de narrador”, explicam as Lagartijas. E é nesse ponto que se encontram com Chantal Mouffe, a filósofa política pós-marxista do Centro para o Estudo da Democracia da Universidade de Westminster (e nada relutante guru do movimento Podemos) que também esteve no Escenas do Cambio a explicar porque é que práticas artísticas como o teatro têm o poder de criar formas de identificação colectiva que permitem a mobilização política – hoje, às 16h, repete a sua conferência, Afectos, Política Agonistica e Practicas Artísticas, na Aula Magna da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.

Gabino, para quem Chantal Mouffe é uma espécie de heroína pessoal, pôde finalmente discutir com ela as suas ideias sobre a crise de representatividade que acredita não ser apenas um problema da política, mas também do teatro. Tijuana, aliás, tem obviamente a ver com a vontade de discutir o direito de um actor de classe média a representar um operário que nunca ganhará mais do que o salário mínimo. Para a família que lhe alugou um quarto, Santiago Ramírez não é uma personagem, é a pessoa real que a certo ponto, por já ser da família, passou a ser convidada para o almoço de domingo. Foi um processo difícil, admite Gabino, porque “é muito bonito enganar as pessoas no teatro, onde sabemos à partida que as coisas não são o que parecem, mas na vida real é bastante feio”.

Sorte dele, azar do país, a probabilidade de a família que o alojou um dia saber que tudo não passou de uma peça de teatro é zero: “O teatro é um lugar tão elitista que mesmo que vissem um cartaz não teriam referentes para perceber o que aconteceu”, diz Luisa, que no México será sempre “güera” (loira) apesar dos cabelos pretos e da pele bem morena: “Demorei muito tempo a perceber que não tem a ver com a cor da pele, tem a ver com a classe a que pertenço: tenho livros, tenho computador, vou ao teatro, viajo, tudo isso se impõe.”

Que direito tem Gabino, então, de se fazer passar por quem não é nem nunca será? “Contesto esse método da infiltração que é recorrente no cinema e no teatro – como se passar três dias com um motorista te desse o direito de falar por ele. Esta peça também é uma crítica a essas práticas artísticas que acreditam que aproximar-se de um mundo é suficiente para poder representá-lo. A realidade tem qualquer coisa de irrepresentável; ignorar isso chega a ser imoral.”

Tijuana não quer portanto representar ninguém, nem o exército de assalariados que mantém a economia suja da fronteira com os EUA a funcionar – ninguém a não ser Gabino Rodríguez, 32 anos, actor de cinema e de teatro, membro fundador de um colectivo chamado Lagartijas Tiradas al Sol. Tal como, noutro sentido, Archive, em que o bailarino e coreógrafo israelita Arkadi Zaides extrai uma impressionante linguagem corporal a partir de imagens de violência implícita ou explícita captadas nas zonas mais tensas da Cisjordânia, só o representa a ele próprio.

Arkadi, que nasceu em 1979 na Bielorrúsia mas chegou com 11 anos a Tel Aviv, viu centenas de vídeos do acervo gerido pelo B’Tselem – o Centro de Informação Israelita para os Direitos Humanos nos Territórios Ocupados que em 2007 distribuiu câmaras pelos palestinianos para que pudessem denunciar violações dos direitos humanos – e escolheu “instintivamente” aqueles em que os movimentos dos soldados ou dos colonos israelitas “parecem dança contemporânea”. Depois aprendeu a executá-los, maneira de assumir em palco, perante uma audiência quase sempre estrangeira, que também faz parte dessa comunidade de opressores. “Um artista tem o dever de abordar a sua comunidade. E a minha comunidade está a pagar o preço – físico e emocional – da soberania forçada sobre os palestinianos, do controlo que exercemos sobre os corpos dos outros, o tempo dos outros, o futuro dos outros”, diz ao PÚBLICO para início de uma conversa que havemos de retomar no final de Maio, quando Archive chegar ao São Luiz, em Lisboa, trazido pelo Alkantara Festival.

Os últimos minutos da peça têm a mesma brutalidade do tremendo final de Veracruz, nos estamos deforestando o como extrañar Xalapa, de Luisa Pardo, só que sem dedilhados de guitarra a acompanhar e a dar ao espectador o conforto que ele certamente merece (em vez disso, há gritos e uma acusação, “nazi!”, mil vezes repetida). Como as Lagartijas, Arkadi sabe que a representação tem os seus limites. A diferença é que o performer israelita é bastante menos lírico: um artista é só um artista. “Havia o perigo de eu acabar por dançar o conflito, o perigo de eu cair na armadilha de o representar. Mas o meu trabalho em Archive é tão técnico que não sinto nada quando faço estes gestos. Não tenho tempo para sentir.”

O PÚBLICO viajou a convite do Escenas do Cambio