Almeida Santos, o homem que fez de pêndulo no regime e no PS

Obituário de António de Almeida Santos, que morreu na segunda-feira à noite.

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Foi um activista contra o colonialismo e defensor de uma solução negociada para a guerra colonial, embora tenha mantido uma sólida relação com as elites brancas de Moçambique nos anos em que exerceu advocacia em Lourenço Marques, entre 1953 e 1974. Foi o autor de dezenas de diplomas legais que acabaram com o edifício autoritário do Estado Novo, mas não se salvou das duras críticas da extrema-esquerda e dos sectores conservadores, que nunca lhe perdoaram a sua opção pela “democracia burguesa” ou o seu empenho na descolonização. Teve sempre uma palavra assertiva nas grandes questões do PS desde 1974 até à actualidade, mas sempre que o verniz estalou no interior do partido, assumiu o papel de articulador de sensibilidades.

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Foi um activista contra o colonialismo e defensor de uma solução negociada para a guerra colonial, embora tenha mantido uma sólida relação com as elites brancas de Moçambique nos anos em que exerceu advocacia em Lourenço Marques, entre 1953 e 1974. Foi o autor de dezenas de diplomas legais que acabaram com o edifício autoritário do Estado Novo, mas não se salvou das duras críticas da extrema-esquerda e dos sectores conservadores, que nunca lhe perdoaram a sua opção pela “democracia burguesa” ou o seu empenho na descolonização. Teve sempre uma palavra assertiva nas grandes questões do PS desde 1974 até à actualidade, mas sempre que o verniz estalou no interior do partido, assumiu o papel de articulador de sensibilidades.

Deputado, várias vezes ministro, presidente da Assembleia da República, presidente e presidente honorário do PS, António de Almeida Santos, que morreu nesta segunda-feira à noite na sua casa em Oeiras, ficará na história da II República (ou na III para os que incluem o Estado Novo na classificação) como uma figura pendular. Nunca teve a aura de lutador de Álvaro Cunhal, a coragem visionária de Mário Soares ou a exigência reformista de Sá Carneiro. Mas a sua produção legislativa nos anos decisivos da consolidação democrática ajudaram a mudar o país e o seu permanente empenho em fazer pontes, nos oito governos em que foi ministro, no Parlamento ou no PS, garantiram-lhe um lugar de relevo na história do país do último meio século. Não sendo uma figura consensual, Almeida Santos não deixa ainda assim de ser um emblema do PS e da construção da democracia.

Nascido numa aldeia do concelho de Seia há quase 90 anos, podemos adivinhar os seus valores políticos originais no quadro do conservadorismo rural típico da época. A passagem pelo curso de Direito da Universidade de Coimbra, no início dos anos 50, haveria de lhe abrir outros horizontes. Como líder estudantil, empenhou-se na acção cultural que lhe abriu horizontes e lhe propiciou contactos - conheceu aí Maria Barroso, que “além de talentosa era bonita”, quando a convidou para uma sessão de declamação de poesia. Por essa altura, “aproximou-se da oposição de inspiração social-democrata e republicana”, nota o historiador e cientista político António Costa Pinto. Esses valores irão permanecer incólumes quando opta por uma carreira profissional em Moçambique, onde se estabelece como advogado em 1953.

Poucos anos mais tarde, Almeida Santos assiste ao deflagrar da guerra na fronteira do Norte, entra nos movimentos oposicionistas e assume-se como o mais destacado membro do grupo dos Democratas de Moçambique. Começa a ganhar capital político, apesar de o grupo ter uma natureza semilegal. A PIDE e a administração colonial seguem-lhe os passos. A espiral de violência da guerra promovida por Kaúlza de Arriaga, no final dos anos 60, levam-no a pedir uma solução de paz negociada com a Frelimo. Parte dos sectores mais progressistas da população branca acompanham-no, até porque ainda não estava em causa a concessão de independência da colónia – o que, sublinha António Costa Pinto, só se colocaria depois do 25 de Abril. O poder, porém, afronta-o. Nas eleições de 1969, numa altura em que governava a colónia Baltazar Rebelo de Sousa, pai de Marcelo Rebelo de Sousa, espreita uma oportunidade da “Primavera Marcelista” e candidata-se a deputado. A sua candidatura acabaria por ser proibida.

Nos alvores de 1974, Almeida Santos era um destacado oposicionista, mas integrava uma facção moderada da oposição. Era, apesar de tudo, um homem da elite branca da capital colonial, onde se tornou advogado de sucesso e fez fortuna em causas repartidas por Lourenço Marques, Lisboa, Joanesburgo ou Londres. Mas o seu entendimento do processo colonial recomendavam-no para estar perto do poder democrático que nasceu no 25 de Abril, até porque as colónias seriam uma das prioridades dos governos provisórios. António de Spínola chamá-lo-á para Lisboa, onde assume a pasta da Coordenação Interterritorial (o velho Ministério das Colónias ou do Ultramar) nos primeiros quatro governos provisórios. Deixará o Governo quando Soares e Sá Carneiro batem a porta na sequência do "caso República" e do avanço dos sectores mais radicais do MFA. Pelo caminho, torna-se um dos rostos da descolonização. Para ele, a proposta de auto-determinação de Spínola para as colónias, que antecipavam uma transferência de poder que poderia viabilizar uma supremacia branca ao estilo rodesiano, não faziam sentido. Tornou-se um dos responsáveis pela entrega das colónias aos movimentos de libertação, decisão que o perseguiria toda a vida.

É como ministro nos governos provisórios que conhecerá o seu principal companheiro de estrada na política, Mário Soares. Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, cabendo-lhe a condução do processo da descolonização, mas a influência de Almeida Santos no processo foi decisiva, embora, aí como na posteridade, Almeida Santos se tenha remetido a um estatuto de subalternidade em relação à figura maior da história do PS.

Rui Mateus, descreve o início dessa relação no seu livro Memórias de um PS proibido: “Mário Soares não podia ser exactamente considerado um expert em questões africanas e, em termos práticos, a responsabilidade dos contactos com os Movimentos de Libertação viria a ser essencialmente confiada a um ministro para a então designada Administração Interterritorial. O qual, sendo um homem hábil em negociações, demonstrou ser politicamente fraco, deixando-se sempre ultrapassar pelo seu amigo. Refiro-me evidentemente a António de Almeida Santos”.

As negociações em Lusaka que em Setembro de 1974 estatuem o cessar-fogo e o período de transição para a independência de Moçambique tornam-se rapidamente letra morta e, em Lourenço Marques, a Frelimo desencadeia ataques que dizimarão qualquer esboço de alternativa democrática no futuro regime e obrigam milhares de brancos a fugir para a metrópole ou para a África do Sul. Almeida Santos tenta contemporizar e explicar o comportamento de Samora Machel e da Frelimo. Por isso e pela sua obra como ministro, tornar-se-á alvo de “um ódio discursivo que o perseguiu durante anos, vindo principalmente da reacção conservadora à descolonização e dos retornados”, diz António Costa Pinto. Almeida Santos passará anos a tentar apagar essa acusação. “Fomos vítimas do clima que se vivia em Portugal, quer nas Forças Armadas quer no civil. Eu posso reivindicar para mim que me mantive sempre com uma certa moderação”, justificar-se-á ao PÚBLICO, em 2004. O anátema nunca se apagou. "Eu e Mário Soares fomos tão vilipendiados, tão acusados de tudo e mais alguma coisa...”, lamentaria em 2006

Nesses anos cruciais da instauração de uma democracia liberal, Almeida Santos é o homem que cria os novos alicerces do Estado de Direito. “Ele sempre teve uma enorme capacidade de produzir leis e de escrever. Com a sua caneta Futura preta, era capaz de redigir um programa de Governo em três dias”, afirma Vitalino Canas, destacado militante do PS e coordenador de um estudo sobre os 30 anos da história do PS. “Fiz dezenas de leis no próprio Conselho de Ministros, eram aprovadas logo ali e publicadas. Posso ter a vaidade de ter sido eu um dos principais artífices. Dificilmente terá havido um legislador que tenha feito tantas leis e tão rapidamente”, recordaria Almeida Santos, numa entrevista ao PÚBLICO, em 2014. No primeiro Governo Constitucional, assumiu a pasta da Justiça e teve de “fazer mais do que nunca". "A maior parte das leis estava desajustada com a Constituição, tive de revê-las, incluindo os Códigos. A reforma da legislação tinha o prazo de um ano e meio. Mudaram as leis de família e das sucessões no Código Civil. Mas fiz isso sem problema, dirigi equipas e não houve polémicas. Tive também de reestruturar o Ministério Público e a magistratura”, acrescentou na mesma entrevista.

Dos combates ideológicos do Verão Quente até à revisão constitucional de 1992, Almeida Santos definirá a sua posição na ala moderada, social-democrata, do PS e manterá a sua profícua produção legislativa. Jamais terá um papel crucial, ou fracturante, nos anos da consolidação do regime ou na afirmação do PS. Mas vai fazendo pontes, criando laços e articulando sensibilidades. “Sempre foi um conciliador, um homem de equilíbrios, sempre esteve no centro político do PS”, diz Vitalino Canas. “Nunca desistiu de tentar fazer pontes em nome de valores em que acreditava, de uma visão do bem comum e de causas justas”, acrescenta Jorge Sampaio em declarações à agência Lusa. Quando o partido se cinde nos confrontos com o ex-secretariado ou nas presidenciais de 1986 que opuseram Mário Soares a Salgado Zenha, é ele quem reúne as melhores condições para evitar uma guerra fratricida. “O PS estava completamente dividido e ele foi visto como o único homem capaz de juntar os cacos e de fazer alguma união”, continua Canas. Manterá esse esforço nas divergências entre Guterres e Sampaio ou, na bancada parlamentar, entre Sampaio e Jaime Gama.

Eleito secretário-geral na ressaca da guerra do ex-secretariado e no contexto de uma disputa entre Soares e Salgado Zenha na corrida pela Presidência da República, Almeida Santos parte para as legislativas de 1985 numa posição vulnerável. Como candidato a primeiro-ministro tendo pela frente a cisão do PS, a herança da austeridade do Bloco Central e a ameaça do PRD, criado por Ramalho Eanes para disputar o espaço dos socialistas. Os resultados que obtém são desastrosos: 20,8%. Em breve uma nova geração, mais centrista, tomará o poder no partido e Almeida Santos remete-se a uma posição de senador. Várias vezes se falará dele para Presidente da República. O PS reconhecer-lhe-á os seus méritos e contributos, elegendo-o presidente do partido em 1992 e, com Guterres no Governo, presidente da Assembleia da República, em 1995. Em 2011 tornou-se presidente honorário do PS.

Mesmo que nunca tenha desistido de tomar partido (por António Costa contra António José Seguro, por Maria de Belém contra a maioria dos seus pares, adeptos de Sampaio da Nóvoa), mesmo que tenha mantido afectos politicamente incorrectos (“Sócrates é um homem honesto”, proclamou após a detenção do ex-primeiro-minsitro), mesmo que por diversas vezes tenha sido veladamente acusado de suspeitas de ser um agente de negócios, Almeida Santos tornara-se uma figura querida e consensual do partido, à qual tudo se tolerava, tudo se perdoava. Era, afinal, a sua remuneração política por tantos anos de empenho na unidade do partido. E do país, para o qual sempre defendeu uma democracia liberal inspirada na matriz europeia. Pelo que foi e pelo que fez, “deixou a sua marca escrita na história da democracia”, diz Vitalino Canas.