“É tão importante actuar num quintal em Kisangani como no Festival de Avignon”

A dança do congolês Faustin Linyekula vive do esforço para encontrar uma solução para as suas "questões" – de pertença e de conflito – com o legado europeu. Entrevista com o Artista na Cidade 2016.

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RICARDO CAMPOS

Na terceira edição da bienal Artista na Cidade, Lisboa acolhe uma série de obras e iniciativas do bailarino e coreógrafo congolês Faustin Linyekula, nascido no antigo Zaire em 1974. O interesse internacional pela forma como junta no seu corpo a história pessoal e a do seu país levou-o a apresentar-se em Lisboa a partir de 2003, nos festivais Danças na Cidade e Alkantara, assim como no Teatro Maria Matos. Fundador, em Kisangani, no interior da República Democrática do Congo, dos Studios Kabako, em 2001, Linyekula revelou-se desde então um dos mais estimulantes criadores em solo africano. A partir de 14 de Janeiro, data em que estreia o espectáculo Portrait Series: I Miguel, no Teatro Camões, haverá todo um ano para comprová-lo. 

Quando foi convidado para ser o Artista na Cidade, houve alguma ideia específica que se lhe impôs de imediato?

Fui convidado em Abril do ano passado através de um telefonema do Mark Deputter [director artístico do Teatro Maria Matos]. “Não sei se ouviste falar deste projecto que estamos a fazer”, disse-me ele, “mas discuti com os meus colegas e gostávamos que fosses o artista para o próximo ano. É a terceira vez que o fazemos, tivemos antes a Anne Teresa de Keermaeker e o Tim Etchells”. Saiu-me “Meu Deus, o Tim fez isso?” O Tim Etchells é alguém por quem tenho uma grande admiração, muito mais até do que pela Anne Teresa. Conhecemo-nos e tenho muito respeito por aquilo que ela construiu, mas não é como a obra do Tim, que é muito importante para mim. E depois perguntei ao Mark porquê eu. Ele explicou-me que sentiram que seria interessante partilhar o trabalho que faço em relação à minha cidade e desenvolver uma relação com Lisboa em torno dessa ideia. Até porque esta questão de andar para trás e para a frente entre Kisangani e o resto do mundo está no centro do meu projecto e dos meus processos. Cada vez que estou fora do país, as minhas questões são “o que posso levar desta experiência de volta para Kisangani?” e “o que posso trazer comigo de Kisangani?”. Isso traduz-se mesmo na minha realidade.

Em que sentido?

O francês tornou-se a minha primeira língua e, sabendo que a língua não é apenas uma ferramenta de comunicação, posso dizer que através dele aprendi a olhar e a pensar o mundo à minha volta. E significa que sou tão francês quanto qualquer outra pessoa cuja primeira língua seja o francês. Ao mesmo tempo, não é a língua que falo com a minha mãe, o que significa que há uma outra forma de pensar a vida que também é minha. Como abraçar tudo o que sou, estando aqui e lá ao mesmo tempo? A primeira coisa na minha mente ao vir para Lisboa foi perguntar-me como posso traduzir essa relação – que no fundo é a relação entre o centro e a periferia, uma vez que ainda vivemos num mundo moldado por uma história colonial, com o império e a periferias, as metrópoles e as colónias.

Os teatros mundiais em que se apresenta estão no centro. Ao trazer consigo uma linguagem e histórias que têm que ver com a experiência da periferia, sente que o faz diante de um público que não tem uma relação real com aquilo que mostra?

É uma forma de lembrar esse mundo de que também faz parte da história. Só se pode justificar esta posição central porque existe uma periferia. Essa pergunta implica uma reflexão mesmo em Kisangani. A forma como os belgas organizaram as cidades no Congo fez com que sempre tivéssemos la ville, onde viviam os europeus, e la cité, onde viviam os indígenas. E entre la ville e la cité sistematicamente construíram zonas-tampão – em Kinshasa há um campo de golfe, um zoo, um jardim botânico e um grande mercado que separam as duas zonas. Hoje estou do lado dos privilegiados na sociedade congolesa. Posso comprar coisas com que 90% dos congoleses nem sequer sonham – posso pagar um cuidado médico decente se estiver doente, posso pagar uma refeição decente, um luxo para a maior parte das pessoas lá. Obviamente que temos a tendência de gravitar em direcção ao centro porque é lá que existem infra-estruturas básicas, tudo aquilo que foi herdado do regime colonial.

E a chegada ao centro serve como validação do sucesso na vida de qualquer um.

Exactamente. A simples ideia de ir para Kisangani [onde Faustin Linyekula fundou há 15 anos os Studios Kabako] foi uma forma de resistir a uma híper-centralização da vida pública no Congo, em que é só Kinshasa, Kinshasa, Kinshasa, nada acontece no resto do país. Quando vou para Kisangani, é mais conveniente estar na velha cidade colonial, onde tenho água potável. Mas como é que desafio isto? Talvez desenvolvendo trabalho na periferia, para que o espaço na cidade se torne apenas um espaço entre outros. Vir a Lisboa com esse background, com o propósito de estar não apenas no centro da cidade, mas na cidade num conceito alargado, levanta essa questão desde o início – como é que experiencio aquilo que não está no centro? Depois de uma primeira conversa, a EGEAC organizou uma ida minha à Cova da Moura e fiquei fascinado: “Aqui reconheço alguma coisa da minha realidade." Perguntei se seria possível apresentar alguma coisa na Cova da Moura e tentei imaginar formas possíveis de manter uma conversa ao longo do ano. Estou muito feliz por estar aqui neste palco prestigiado [Teatro Camões], mas não posso deixar de pensar que é igual àquele em que estou em Paris. Nas ruas de Paris vejo pessoas de todas as partes do mundo e no teatro noto a cor da minha pele, porque as pessoas que se parecem comigo não frequentam o teatro. O que diz isso sobre a instituição? Mas o que diz também sobre mim? Quererá dizer que sou um côco, preto por fora e branco por dentro? Porque sinto-me confortável nestes espaços, sinto-me em casa aqui. Como pode esta presença funcionar em Lisboa e existir em Kisangani?

Quis também procurar lugares que tivessem uma forte implantação multicultural e um contexto pós-colonial, comunidades com histórias de vida mais próximas da sua?

Não foi essa a motivação inicial, mas depois chegámos a esse ponto. Quando conheci o Miguel [Ramalho, bailarino da Companhia Nacional de Bailado para quem criou o solo Portrait Series: I Miguel], a primeira coisa que fiz foi pedir-lhe que me levasse ao seu bairro, mas também ao lugar onde nasceu. E então ele levou-me ao Vale da Amoreira e senti que era um pedaço de África em Lisboa – mas não exactamente em Lisboa. As peças começam a encaixar-se e, de repente, começamos a aperceber-nos de que na maioria das cidades europeias há sempre uma fatia importante de África fisicamente presente. Mas é necessário não a procurar no centro do poder, é preciso ir um pouco até à periferia para a encontrar. É também uma forma de dizer que, para mim, é tão importante actuar num quintal em Kisangani quanto no Festival de Avignon.

Mas em termos criativos Kisangani e Avignon são diferentes para si. Precisa do seu próprio solo, de estar próximo de casa para funcionar enquanto criador?

São dois movimentos diferentes. A criação é como uma viagem para dentro de mim mesmo, uma tentativa de clarificar algo comigo. Mas uma vez isso clarificado quero ir lá para fora e partilhá-lo – esse é o segundo movimento. O movimento de clarificação, até agora, senti que precisava de localizá-lo no Congo. E claro que o Congo não existia sem a Europa. Agora que oficialmente o colonialismo terminou e que tecnicamente somos iguais, onde está o Congo na Europa? Por isso foi importante que o Miguel tivesse ido ao Congo. Há algumas coisas que só fazem sentido se tivermos passado por elas com o nosso próprio corpo. Podia ter-lhe contado todas as histórias deste mundo, mas nada teria o poder de uma simples hora a andar sozinho em Kisangani e a ouvir chamarem-lhe “mzungu, mzungu, mzungu” (“homem branco, homem branco, homem branco”). A experiência de ser o outro não é passível de ser contada a alguém. Esse tipo de cumplicidade foi essencial para o trabalho.

Cria muito a partir da memória. Isso é algo que tenta explorar a um nível íntimo e pessoal, ou tenta trabalhar uma voz colectiva a partir de pesquisas temáticas?

Diria que até agora tem sido sempre, em primeiro lugar, uma questão pessoal. Só depois faço alguma investigação. Se comecei a interessar-me pela História, não foi tanto por um interesse particular mas antes pela necessidade de encontrar algum sentido na situação actual, na esperança de que se fizer isso possa desenhar estratégias para ir mais além. Porque ao trabalhar no Congo e ao contar histórias dali por vezes tenho a sensação de que é sempre a mesma história. A mesma história de violência e sangue, ou de resistência e resiliência. Não quero andar sempre a contar esta história. Especialmente porque o meu público primordial está no Congo e conhece a violência na própria pele. Como é que posso falar disso de forma a trazer-lhes algo? É também uma estratégia de sobrevivência, porque embora o meu país se chame República Democrática não é uma democracia, o que significa que se pode ser preso ou assassinado por causa daquilo que se pensa e se expressa  mas tenho esperança de que se continuar a procurar uma forma posso dobrar a censura. Preciso mesmo de ter uma relação íntima com qualquer ideia, mas sei que negoceio com algo que é maior do que o meu ser – ainda que sem negar o indivíduo, porque um dos principais problemas em países como o nosso é que, desde que foram inventados pela Europa em 1885, nunca houve espaço para os indivíduos. A natureza das ditaduras é suprimir os indivíduos. E como posso eu fazer uma obra que coloque o indivíduo no centro de todo o dispositivo?

Não tinha planeado nenhuma nova criação para os próximos anos. Consegue mesmo desligar-se dessa forma? Não fica obcecado por questões urgentes que o obrigam a criar?

Não tenho conseguido dar uma forma de peça à questão com que tenho andado obcecado nos últimos três anos. A única forma que vejo [de a resolver] é construir um centro de tratamento de águas, que é também um centro de arte para o bairro, um lugar onde os miúdos, os jovens possam ter condições para fazer música, filmes, fotografia, dança. Um espaço onde possamos treinar o nosso olhar para olharmos para nós com a nossa perspectiva, porque hoje ainda nos vemos através dos olhos europeus. Talvez consigamos inaugurar no final deste ano, porque comprámos um terreno para o projecto-piloto e vamos começar a construir em Julho. Nessa altura, é possível que possa ter espaço na minha cabeça para imaginar outra coisa.

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