A moral é política, a política é moral

Nos seus livros, como neste A Mulher da Lama, Joyce Carol Oates vasculha incessantemente o lixo ambiental, moral, social, político e cultural de um país de desmesuras.

Foto
Oates escreveu este livro quando redigia as memórias da sua viuvez, época em que a dor a levou quase ao suicídio Christopher Peterson/corbis

A América de Joyce Carol Oates é um território de detritos, de abandono e decadência resultantes do excesso, da abundância descontrolada. Nos seus livros, ela vasculha incessantemente o lixo ambiental, moral, social, político e cultural de um país de desmesuras, alimentado pela ideia, oriunda dos primeiros colonos, de que tudo é possível, nesse espaço de liberdade e realização de sonhos de sucesso e grandeza. E se, mais uma vez, em A Mulher da Lama, a heroína ascende a uma posição de prestígio, esse lugar de topo é mais do que uma maldição, é toda uma metáfora da queda, da expulsão de um paraíso que os mortais comuns, com as suas vidas manchadas pelos dramas pessoais, não têm o direito a almejar. Os que triunfam, os que se destacam, os que vencem, num caminho difícil e espinhoso, pagam um preço elevado e têm dificuldade, ao reinventarem-se, em descartar o peso do passado.

No ambiente de histeria pós 11 de Setembro, enquanto os EUA se lançam na malfadada Guerra no Iraque e se dividem em defensores e opositores dessa catastrófica empresa, numa aprazível e prestigiosa universidade da Ivy League, a sua Presidente, a simpática, eficiente e discreta Meredith Ruth Neukirchen, gere o seu trabalho e a sua vida social com destreza, justiça e habilidade. Na magnífica e soturna residência oficial no campus, recebe convidados que pertencem à elite intelectual do país e que, à mesa, discutem livremente os temas da actualidade e trocam impressões sobre as desgraças da humanidade. Meredith - ou Merry, ou simplesmente M.R. como ela gosta de ser chamada, pela neutralidade das iniciais - é a primeira mulher presidente de uma instituição deste calibre e tudo faz para estar à altura da importância do seu cargo. Mas a existência de M.R. é, pelo menos aos seus próprios olhos, uma fraude, uma invenção. Esta mulher, carregada de louros académicos e de louvores, não só no seu campo de excelência, a filosofia, como também na acção directa na universidade - opõe-se directamente às forças mais reaccionárias cuja escalada se faz sentir a cada momento - enverga um disfarce que a protege e oculta o seu verdadeiro “eu”.

Meredith, Merry, M.R. é, na realidade Jedina Kraek – note-se o peso dos nomes que a autora impõe às suas personagens - afogada no negrume da lama, nas margens do Snake River, aos três anos, pela própria mãe, uma louca que ouve vozes e é impelida por Deus a “libertar” as crianças. Jedina é salva in extremis por um caçador furtivo que, de acordo com o imaginário fantástico da autora, é levado até ao seu corpo sufocado e agonizante pelo “rei dos corvos”, uma entidade fantasmagórica - a narrativa é construída como um conto tradicional de horror - que a acompanhará ao longo da vida. Jedina, resgatada, assume a identidade da sua irmã Jewell - essa sim, morta, depois de ter sido enclausurada num frigorífico, descartado e despejado - é recolhida pelos Skedds, uma família de acolhimento onde convive com outras crianças meio-selvagens e acaba por ser adoptada por um casal de bondosos Quaker que lhe propiciam um lar acolhedor, pacífico, literato e caloroso, rebaptizando-a como Meredith Ruth, o nome da filha que perderam. Mas a criança que foi atirada ao lodaçal, por mais calada, estudiosa, trabalhadora e séria que seja, por mais longe que a sua inteligência e brilhantismo a leve - estudante modelo, bolsa para Harvard, um amante secreto astrónomo, honrarias e prémios, longe, bem longe dos pais adoptivos e da cidade de Carthage onde cresceu – essa mulher sabe que, mais cedo ou mais tarde, o passado a apanhará e a máscara que tão laboriosamente criou estalará e revelará a sua essência como “rapariga da lama”, uma boneca de trapos com um rosto de porcelana estilhaçado descartada num recanto abandonado, assustador, imundo, negro, numa dessas paisagens - aqui, junto ao Lago Ontário, no sopé dos Adirondacks - .que Oates recria infindavelmente, na sua obra: entre outros exemplos, o pântano em Angel of Light (1981), o canal em A Filha do Coveiro (2007), o lixo em Marya: A Life (1986), a água negra na novela (Black Water, 1992) inspirada no acidente em Chappaquiddick, que vitimou a jovem secretária de Edward Kennedy.

Quando, na Universidade, os problemas surgem com intensidade – a tentativa de suicídio de Stirk (a sua nemesis), um aluno inteligentíssimo e republicano feroz, gay, anti-aborto e pró-guerra que encena uma cena de ataque sobre a sua pessoa, a pressão de uma multinacional e o avanço das forças conservadoras - Meredith, habituada a ser “amada” e seguida com deferência, começa a falhar, estrondosamente e, no lugar da impecável Presidente, vai emergindo uma espécie de monstro, isto é, essa mesma “mulher da lama”, abusada, maltratada, batida, suja, que ela, tão cuidadosamente, tentou mascarar.

Oates escreveu este livro ao mesmo tempo que redigia as memórias da sua inesperada viuvez (A Widow’s Story: A Memoir, 2011), numa época em que a própria autora reconhece que a dor da perda do primeiro marido a levou quase ao suicídio. Em A Mulher de Lama, principalmente na segunda parte que resvala para uma sucessão de cenas macabras, semelhantes às que Stephen King utiliza com grande efeito nas suas obras de terror psicológico e físico, recupera imagens que a perseguem numa espécie de pesadelo contínuo: águas profundas e insondáveis, caves escuras, imundície, paisagens desoladas, cobras que se enroscam até sufocarem a presa – a citação de Nietzsche, “O que é um homem? Uma bola de serpentes”, é como uma litania que percorre o livro – violência dos homens sobre as mulheres, a loucura instalada num país que, tal como Meredith, vive em pleno terror. A acção de A Mulher da Lamasitua-se nos anos 2002- 2003, com capítulos que revertem para o passado, nos anos 60, e Oates mantém a narrativa fortemente colada ao paralelismo entre o estado de pura demência pública, política, e o drama pessoal de Meredith, na sua solidão e depressão que evolui, como numa tragédia grega, para a catástrofe. Mas sem a função essencial da catarse.

Sugerir correcção
Comentar