Ponto de partida, ponto de chegada

Era um lugar esquecido da cidade até Manuela e João instalarem ali o espaço Mira. E, de repente, Miraflor voltou a fazer parte do léxico da cidade, com os seus armazéns abandonados a encher-se de cultura, em vez de carvão e cereais.

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É dia de inauguração e há um pequeno grupo de pessoas na Rua de Miraflor a ocupar a via, sem preocupações, porque, se vier algum carro, há-de vir devagar (a estreiteza deixada pelos carros estacionados não dá para mais) e será visto com bastante antecedência. Há cerca de dois anos que é assim. A rua nas imediações da estação de Campanhã, caída no esquecimento depois do encerramento de armazéns e fábricas, tornou-se o ponto de passagem obrigatório desde que ali abriu o Espaço Mira.

Aquela fora sempre, de alguma maneira, a rua de Manuela e João, mesmo que não o soubessem. Ele morava numa rua paralela e tinha os telhados dos armazéns por companhia. Ela teve familiares cujos dias de trabalho passavam por ali. Em Miraflor, que foi, originalmente, Miraflores, mas que ao longo dos séculos perdeu o plural, havia a vida agitada de uma freguesia profundamente industrializada. Os 11 armazéns que Manuela e João encontraram vazios enchiam-se de carvão ou cereais. Há moradores que ainda se recordam de ali funcionar uma fábrica de tecidos. Algumas fachadas escondem as construções típicas do operariado portuense do século XIX, as “ilhas” do Porto.

Depois, as fábricas fecharam. Os armazéns esvaziaram-se. Campanhã já não aparecia como terra de trabalho, oportunidades e expansão, mas como a freguesia mais oriental da cidade, a mais pobre, a com bairros sociais maiores e mais problemáticos.

E a Rua de Miraflor, tão à vista de todos e ao mesmo tempo tão escondida, na sua estreiteza tímida ofuscada pela largueza da estação ferroviária, caiu no esquecimento.

E, durante esse tempo, desde o tempo em que os últimos armazéns se esvaziaram e iniciaram a sua lenta derrocada, nos anos 1980, Manuela e João iam crescendo ali ao pé, apaixonando-se pela fotografia e um pelo outro. E, quando chegou o dia de decidirem onde ganharia raízes o projecto com que sonhavam há anos — o de ter uma galeria que não fosse bem uma galeria, antes um espaço aberto à cultura, sob a forma preferencial da fotografia —, alguém lhes falou dos abandonados armazéns da Rua de Miraflor e eles perceberam que era altura de voltar a casa. O seu ponto de chegada era, afinal, o que fora o ponto de partida de ambos.

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Os amigos acharam que estavam doidos. Campanhã, a mal-amada, a esquecida, o território dos grandes espaços vazios, fora da Baixa onde todos agora querem estar, só podia dar errado. Mas eles insistiram. Compraram dois armazéns, montaram uma exposição e, de repente, apareceu gente. E apareceu também uma reportagem no PÚBLICO. E, então, o projecto de Manuela e João tornou-se público e alguém achou que eles deviam saber alguma coisa para investirem ali. E, em poucas semanas, os 11 armazéns vazios que ocupam grande parte de um dos lados da rua foram vendidos. A gente das artes, a gente que quer levar para ali mais projectos. A gente que achou que, se calhar, Campanhã podia fazer sentido.

Manuela Monteiro já contou esta história várias vezes, a última das quais perante uma plateia cheia durante a Semana da Reabilitação do Porto. Foi a intervenção mais aplaudida da manhã, enquanto ela contava como os moradores de Miraflor sentiam cada vez mais o espaço como seu e se orgulhavam de ouvir o nome da rua falado por um bom motivo, não por causa do abandono, da pobreza ou da degradação.

Em tarde de inauguração, o espaço Mira e o Mira Fórum enchem-se de pessoas que vão ver uma exposição e ouvir um jornalista e um fotógrafo falarem do livro que acabaram de lançar. Mas podia ser dia de uma palestra, de outra exposição qualquer, de um concerto ou um workshop. Desta vez, a D. Benilde, que é vizinha dos armazéns, não irrompeu por ali dentro, levando uma saca de limões ou uma penca a Manuela. Mas isso já aconteceu, garante, e ela quer que aconteça sempre que a D. Benilde quiser. Porque o Mira e a Rua de Miraflor dão-se bem e os principais responsáveis pela nova vida da rua querem que todos se continuem a dar muito bem. Até porque, por ali, ainda está tudo a começar e o ponto de chegada pode ser ainda mais. Miraflor corre o risco de se tornar uma estrela.

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