A tentação de teorizar

Mais um lugar para o atlas de Gonçalo M. Tavares

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Em O Torciclologologista, Excelência, Gonçalo M. Tavares volta a mostrar a sua irreprimível tendência para a alegoria Nuno Ferreira Santos

A bibliografia de Gonçalo M. Tavares percorre-se como um mapa. Ou um atlas, imagem e instrumento de um dos seus livros, aliás — O Atlas do Corpo e da Imaginação (Caminho, 2013). A disposição dos seus lugares, dos pontos em que recai a atenção, ultrapassou a barreira da obra modernamente concebida, para se tentar apoderar de um outro domínio, o de um feroz enciclopedismo. Uma enciclopédia de possibilidades e de locais em potência. Mas o logos a que presta contas parece ter perdido sequer a utopia de qualquer noção de unidade. São quebraduras, estilhaços dele, que servem de alvo às investigações do autor. Não por acaso, uma das entradas da sua obra-enciclopédia chama-se, precisamente, Investigações. Por outro lado, um importante núcleo da produção de Gonçalo M. Tavares chama-se mesmo Enciclopédia — breves notas sobre ciência; breves notas sobre o medo; breves notas sobre as ligações (Relógio D’Água, 2012), onde se lê que as sensações são “outros instrumentos”, além de constituírem um “mapa”. Em O Torcicologologista, Excelência, debatem-se imparavelmente os “mapas do percurso de uma ideia” (p. 79) e postula-se mesmo que “Estar vivo é estar perdido a procurar o mapa que nos orienta na vida” (p. 85).

As disposições de O Torcicologologista surgem como fossem criadas sobre os despojos de um mundo em ruínas. Como noutros pontos da obra de Gonçalo M. Tavares, neste seu mais recente livro está patente a tendência irreprimível para a teorização e a alegoria. E talvez ela encontre o melhor terreno possível num enquadramento textual tão declaradamente híbrido como o deste livro. O autor concebe-o como ficção, mas apresenta-o sob a forma de diálogos contínuos, separados apenas por títulos que marcam a respiração e o tema predominante (não exclusivo) de cada momento do colóquio em permanência. Fora do domínio da ficção narrativa mais ou menos estrita, este apetite pela exploração aparentemente ingénua dos mecanismos das coisas encontra um móbil privilegiado nesta espécie de Godot em que se fala incessantemente quase sem mediação — didascálias, cenário, outras informações que informassem, mas também distraíssem desta odisseia da palavra em debate. No entanto, este absurdo já não é o de qualquer pós-guerra, mas o de uma espécie de pós-tudo em que a audácia da esperança seria um golpe sujo ou um rasgo de suprema coragem. Como se o autor estivesse a proceder à análise de uma explosão por sobrecarga de dados; e a sua esperança parece residir na palavra. Apesar do modo irónico que percorre todo o texto, a procura do “belo e exacto conselho verbal” (p. 231) não é, ao que parece, uma simples ferramenta da irrisão. Estas conversações especulativas e teorizadoras são como diálogos platónicos obedientes a um regime paródico. Nem lhes falta a identificação entre o Belo e o Bom, mas, por fim, advoga-se que os músicos ineptos deveriam ser presos, não “por razões estéticas, mas por razões éticas” (p. 99).

A primeira parte de O Torcicologologista tem como título Diálogos. Nela se desfiam uma série de falas sobre o corpo, o pensamento, as noções de bem e de mal, o poder e a história. Esta preenche a vasta maioria do livro e é suplementada pelo breve núcleo

CidadesCidades é também um dos capítulos da obra de Gonçalo M. Tavares, e inclui Matteo Perdeu o Emprego (Porto Editora, 2010) e Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai (Porto Editora, 2014). De resto, “o alfabeto como hierarquia” do primeiro não é estranho aO Torcicologologista. Assim como a dúvida “como é que o corpo sente o mundo” de Atlas do Corpo e da Imaginação se pode articular com o mais recente livro. Simplesmente, em Torcicologologista tudo é impiedosamente enviesado e elíptico. Porque se limita à dualidade dos intervenientes, que fecham sobre si a comunicação, mesmo se falam do mundo, do corpo e da História, além de, em muitos casos, se tratar mais de dois monólogos repetidos ao longo do tempo do que propriamente de diálogos — “Um diálogo entre duas pessoas não é um processo simples.” (p. 116)

Ao longo do livro, há uma luta permanente entre o cérebro e o corpo, em que este parece estar em clara desvantagem. Do mesmo modo que Deleuze falava, a propósito de Kubrik, de um “cinema do cérebro”, podíamos falar de uma escrita do cérebro. Saber se é o corpo que age a mando do cérebro, se há autonomia entre as parte envolvidas, ou se nenhuma dessas propostas é válida é uma das calhas em que circula esta máquina chamada O Torcicologologista. Um dos instrumentos principais de que se serve é uma apropriação dos procedimentos de uma espécie de filosofia da linguagem.

Apenas diálogo. Uma ininterrupta sucessão de falas. Porque a figura tutelar do dramaturgo, ou a possibilidade de uma aproximação ao discurso dramatúrgico, foi pulverizada pela propulsão comunicativa. A comunicação, porém, revela-se, rapidamente sobremaneira autista, porque não tem em conta nada mais do que a si própria. Não importa o que sejam os resultados de todas aquelas palestras. E contudo, um pouco antes do meio do livro, surgem as rubricas a que poderíamos chamar didascálias. Mas apenas à falta de melhor designação. Fica-se com a sensação de alguma vacuidade, de que, no ponto em que tudo se encontra, aquela mediação surge demasiado tarde. Porque, desde o início, e na verdade mesmo depois da introdução dessas frases auxiliares, aqueles entes falam como se o mundo fosse acabar a qualquer momento e houvesse que entendê-lo antes disso. Como essa perspectiva apocalíptica cada vez menos parece configurar uma tenebrosa profecia, e mais um cenário possível, o texto acaba por adquirir uma dimensão política e que não enjeita, pelo menos integralmente, uma certa leitura do mundo — talvez não por acaso, um dos métodos propostos consiste em “utilizar, por exemplo, o mapa de Atenas em Berlim” (p. 86). Mas é como se ela fosse feita de dentro de uma caverna, com luz deficitária, e a visão estivesse entravada por galerias e galerias de distorções e de uma intenção alegórica que parece estar sempre presente na escrita de Gonçalo M. Tavares.

O uso da palavra “Excelência” para interpelar o outro, ao mesmo tempo que instaura um paradigma de ironia, esvazia por completo a possibilidade de autonomia e de personalidade. Ninguém tem nome. E, de resto, no momento final do livro, chamado Cidade, todas as presenças são indicadas por números. Poderia ser-se levado a especular que, nesse último passo de O Torcicologologista, o autor concentrou e transferiu as descrições, os estados e as modulações que faltam na primeira, uma vez que este segmento da obra se limita a enumerar um conjunto de circunstâncias ou estados que, de todo, estão ausentes da secção inicial.

Propositadamente, não se falou de personagens. Porque nenhum dos intervenientes o é. Mais do que representar, recordar, ou antecipar o mundo, esta escrita pretende reflectir sobre ele. Daí que a alegoria com tanta frequência domine a sua realização. As vozes que aqui falam não estão fora do mundo, mas estão nos limites dele. Observam-no como crianças ilustradas, como inquiridores permanentes.

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