Um El Greco ainda sem fantasmas, mas já com “aquela luz”

Museu de Arte Antiga expõe A Sagrada Família com Santa Ana, pintura do homem que esperou séculos até que o considerassem um mestre. O médico português Ricardo Jorge dizia que a sua obra era, sem dúvida, a de um génio paranóico.

Fotogaleria
A Sagrada Família com Santa Ana, foi identificada como sendo uma pintura de El Greco no século XIX Cortesia: Arquidiocese de Toledo
Fotogaleria
A pintura antes do restauro dos anos 1980, quando a figura de São José não estava ainda visível Cortesia: Arquidiocese de Toledo
Fotogaleria
A radiografia que permitiu aos restauradores identificar o homem escondido sob camadas de tinta, não se sabe quando nem porquê Cortesia: Arquidiocese de Toledo

Até ao fim assinou como Domenikos Theotokopoulos, como se nunca tivesse pertencido a outro lugar se não à ilha onde nasceu, Creta; como se os anos que passou em Toledo, a que deve a fama tardia, não tivessem chegado para que espanholizasse o seu nome. É como El Greco, no entanto, que o mundo o conhece.

O retrato que dele traçam os seus contemporâneos apresenta-o como irascível, conflituoso, arrogante, inadaptado e megalómano. Sentia-se só em Toledo, julgando, do alto da formação humanista que fazia dele um homem culto, que ninguém o compreendia e, muito menos, o aceitava. Talvez fosse assim. Certo é que a sua obra ficou, redescoberta pelos românticos, quase divinizada pelos modernos. Pelo meio “diagnósticos” vários, como o do médico português Ricardo Jorge, tantas vezes transformado em historiador de arte e de literatura, que atribuía as suas figuras descarnadas de rostos assimétricos à doença mental, fazendo dele um génio paranóico. Seria?

A Sagrada Família que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tem em exposição no seu programa Obra Convidada, que nesta “edição” integra a Mostra Espanha 2015, é uma das versões deste tema que El Greco (1540/1541-1614) – o Grego – pintou, mas encerra um mistério que não é comum às restantes e que diz respeito à identidade do homem que nela está representado como São José e que só um restauro feito no Museu do Prado na década de 1980 tornou visível. Quem era este retratado cuja fisionomia foge à das outras figuras da composição? Seria o doador? Por que razão terá sido apagado e quando? Terá caído em desgraça? E por que motivo?

Estas perguntas, diz José Alberto Seabra Carvalho, historiador de arte e director adjunto do MNAA, juntam-se a outro debate, o que envolve o nome da mulher à direita da Virgem. Será Santa Ana, mãe de Maria, ou Santa Isabel, sua prima? E o que está a fazer? Procura confirmar o sexo do bebé que acaba de nascer – o que está muito longe de ser um detalhe, sobretudo dado o contexto - ou o seu gesto destina-se a evocar a morte de Cristo?

Muitos, explica Seabra Carvalho, apostam na mãe da Virgem, atendendo a que esta pintura, que hoje faz parte da colecção do Museu de Santa Cruz, em Toledo, identificada como um El Greco no século XIX, se encontrava à data no pequeno Hospital de Santa Ana. Outros defendem que só pode ser Santa Isabel porque a outra criança presente é São João Baptista, seu filho e primo de Jesus. É ele, aliás, que parece interpelar o visitante pedindo-lhe silêncio, como se quem olha esta pintura estivesse a assistir àquele momento em directo, correndo o risco de acordar o Menino, ou, simplesmente, porque a cena solene, característica da pintura de devoção, exige recolhimento.

As dúvidas são muitas, mas o que é evidente, acredita o historiador, é que o São José desta Sagrada Família é claramente um retrato e que há no seu tratamento uma cor e um brilho muito venezianos. Não estão lá ainda as figuras esguias, de braços impossivelmente longos, que se reconhecem em muitas obras do pintor de Toledo que sempre se disse cretense (quando nasceu, a ilha hoje grega pertencia à República de Veneza), mas está, por exemplo, a assimetria no rosto da Virgem, uma das suas marcas distintivas, e uma luz muito peculiar.

“Ainda não há aqui aqueles fantasmas de outras pinturas, não há aquele perfume vanguardista, metafísico, mas já há a vivacidade de um colorido entre o estridente e o melancólico, já há aquela luz”, acrescenta, lembrando que o Grego saiu de Creta já pintor, passou por Veneza, onde se deixou influenciar sobretudo por Tintoretto, e Roma, onde trabalhou durante seis anos e só não passou despercebido porque resolveu dizer que Miguel Ângelo, que morrera seis anos antes da sua chegada e cujo prestígio continuava inabalável, não era lá grande pintor. Acabou por se fixar em Toledo, depois de, em 1576, tentar, sem sucesso, que o rei Filipe II se tornasse seu patrono.

“Quando chega a Toledo, El Greco não cai nas boas graças da Igreja, da catedral, por causa da sua má relação com a noção de decoro da contra-reforma”, diz Seabra Carvalho, explicando que a perspectiva que apresentava de alguns episódios religiosos se afastava do que Roma procurava, tinha um pendor “muito humanista”. E isso vê-se em algumas obras centrais no seu percurso, como O Espólio (1579), pintura em que Cristo é presentado momentos antes da crucificação sendo despojado do que veste, ou no Martírio de São Maurício, que faz para Filipe II e o convento do Escorial, em Madrid, obra de que o monarca não gostou: “No Espólio ele pinta as três Marias, que segundo os relatos da Igreja não estariam lá naquele momento; e no Martírio, dá o primeiro plano à conversa que o santo mártir tem com aqueles que vão ser os seus carrascos, deixando o corpo decepado em fundo. A Igreja daquela altura queria que as pessoas se comovessem com o sofrimento de Cristo e do mártir, não queria estas versões alternativas.”

A originalidade do pintor – o historiador de arte recusa-se a referir-se a El Greco como um “revolucionário” ou um “visionário” – está, em boa parte, nesta maneira não muito canónica de mostrar os mesmos temas, algo que agradava à sua clientela de Toledo, composta sobretudo por mercadores, um ou outro clérigo culto, e um (só um) aristocrata, e ao seu círculo próximo, em que se destacavam os poetas.

El Greco e Picasso

“El Greco não é um pintor fora da caixa, o que parece que se quis fazer crer durante muito tempo. Nem podia sê-lo no contexto em que viveu. Mas é um artista culto, com uma boa biblioteca, que vai buscar a Tintoretto a capacidade expressiva das curvas dos corpos, que traz de Veneza o que sabe sobre luz e cor. Não é um pintor rasteiramente devoto, ao contrário da esmagadora maioria dos que havia em Toledo. É claro que o que fazia tinha de ser diferente.”

Um “diferente” que não cativava a maioria. As suas figuras descarnadas, embora de “grande elegância e requinte”, só começam a ser apreciadas por uma camada mais alargada no século XIX, tornando-o referência obrigatória quando os artistas modernos, colocando-o no mesmo patamar de outros mestres mais consensuais, como Velázquez e Rembrandt, começam a dizer-se influenciados por El Greco, contribuindo decisivamente para um dos rótulos que desde então lhe vem sendo colado, o de “pintor de pintores”. Manet, Cézanne, Picasso e Pollock estão entre os admiradores mais confessos.

Desde aí, o artista do renascimento começa a ser tratado como um modernista antes do tempo, chegando mesmo a ver a sua obra A Visão de S. João ou O Quinto Selo (1608-1614), exemplo paradigmático das suas figuras alongadas, sem carne, ser relacionada com uma das pinturas mais revolucionárias de Picasso, Les demoiselles d'Avignon (1907), indissociável do cubismo. Trezentos anos as separam, mas há um “perfume” que as aproxima: “Em El Greco o espaço não é tridimensional, as figuras são representadas de vários ângulos. Não é cubismo, é certo, mas há nele um certo fulgor que nos faz pensar nisso”, reconhece o director-adjunto do MNAA, para quem a pintura deste artista de Creta é “altamente artificiosa”.

Foto
A Visão de S. João ou O Quinto Selo, 1608-1614 Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

Um “artifício” que é muitas vezes sinónimo de “qualidade” e que nos mostra que a sua obra não deve ser vista fora do contexto da época. A mesma opinião tem Keith Christiansen, historiador de arte e curador de pintura europeia do Museu Metropolitan, em Nova Iorque, defendendo que há uma tendência, “fácil”, de olhar para a obra de El Greco como algo isolado, como se ele fosse um homem à espera do futuro. Nada mais errado – El Greco deve ser visto no contexto em que viveu, contemporâneo de pintores como Caravaggio (1571-1610) e Annibale Carracci (1560-1609), como um artista do maneirismo, mas de um maneirismo singular – o que presta mais atenção ao que se imagina do que ao que se pode reproduzir a partir do natural.

E o que se imagina no caso do pintor de Creta e Toledo, defendia Ricardo Jorge num ensaio publicado em 1913 numa separata da Revista da Universidade de Coimbra (El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli), podia muito bem ser produto de paranóia.

O diagnóstico do médico

O médico português que muito escreveu sobre arte, literatura e história lembra neste ensaio que o regresso à primitividade e o grotesco, características que encontra nas “figuras deformadas contra natura e contra razão” de El Greco, são próprias da arte feita nos manicómios por “alienados”.

No texto, carregado de informação retirada de fontes da época e de historiadores contemporâneos de Ricardo Jorge, reconhece-se mérito na sua pintura, mas faz-se um retrato pouco abonatório do homem. Escreve o médico português que vivia num “pardieiro”, entre o “fausto” e a “penúria”, carregado de dívidas, trabalhando para “igrejas de pouca renda e fidalgos de meia tijela”.

“Pintor, levava até à megalomania o conceito das suas faculdades artísticas; a sua craveira excedia a dos mais grados, o seu pincel não tinha preço. Um génio deveras complexivo e rico de dotes, afectado de uma hiperestesia de personalidade, levada até ao delírio”, continua Ricardo Jorge, sublinhando que, na época em que escreve, o mundo da arte vivia já uma verdadeira “grecofilia”, transformado que estava o “o solitário de Toledo” em “glória mundial”.

Ricardo Jorge vai buscar uma das mais aclamadas pinturas do artista para ilustrar esta coincidência de “génio” e “delírio”, descrevendo a cena inferior de O Enterro do Conde de Orgaz como um “soberbo trecho de pintura” e a superior, a do “reino da glória” – o conde recebido no paraíso –, como “a coisa mais desengraçada e clownesca que pode ver-se; ou antes que confrange ver, como borrão que é numa obra-prima”.

Foto
O Enterro do Conde Orgaz, 1586-88 Cortesia: Arquidiocese de Toledo

A crítica, e desde logo a do romantismo, reconhece o médico, teve dificuldade em lidar com a obra de El Greco, atribuindo a sua originalidade a uma “enfermidade cerebral”. “Os desabrimentos e desequilíbrios da sua pintura que haviam de ser senão da mão dum doido?”, interrogavam-se os especialistas do século XIX.

O Grego, precisa neste ensaio de 50 páginas, “alonga o corpo e apequena a cabeça”, “amachuca os panejamentos”, “ilumina e modela as figuras de um modo singular” e exagera a assimetria dos rostos “até à carantonha”. “Nos últimos tempos”, diz ainda o médico-historiador, “não há cara que não esteja torta; nem o menino Jesus escapa”. Depois de uma análise atenta de todos os erros e exageros do pintor na representação do corpo humano, Ricardo Jorge, que não espera da pintura uma “simples execução da anatomia” e dá até como exemplo “o efeito delicioso” que as três vértebras a mais dão à Odalisca de Ingres, passa à análise das semelhanças que existem entre a arte do pintor de Toledo e a que é feita por doentes mentais.

Ricardo Jorge vai buscar as obras A Visão de S. João e A Ceia em Casa de Simeão para falar das suas “almas penadas”, de um “mostruário de horrores e de grotescos”, de “gente desfeita por todas as misérias físicas e morais”, perguntando em seguida: “Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?”

Doido ou não, o médico reconhece, apesar de tudo, que a sua obra é singular: “[…] a luminosidade é um dos predicados do artista; inimigo do escuro, a sua pintura nada em luz. Traço algum de macabro ou pavoroso, nem martírios, nem torturas, nem negruras; abertas radiantes de glória, figuras celestiais e angélicas, animado tudo de um misticismo ingénuo e fervente, que seria o de São João da Cruz e de Santa Teresa de Jesus, se não fora o dele mesmo.”

A sua pintura, lembra Fernando Marías, um dos mais influentes historiadores de arte da actualidade, comissário da mais importante das exposições que em 2014 assinalaram os 400 anos da morte de El Greco e autor de uma importante monografia sobre o artista (Biografia de um Pintor Extravagante, 1997), convoca emoções. Marías, que escolheu a Sagrada Família com Santa Ana que se pode ver no Museu de Arte Antiga até 10 de Janeiro (é o "comissário" desta exposição de um quadro só), explica que essa emoção se deve, em parte, ao magnífico jogo de mãos que a composição guarda. Desse jogo que atrai faz parte uma Virgem que abraça e um São João Baptista que, de início, El Greco quis ver a apontar para Jesus e que, por fim, pintou a pedir-nos silêncio.

Sugerir correcção
Comentar