Direitos das mulheres, 20 anos depois: salários e chefias são “pontos críticos”

A última grande conferência mundial das Nações Unidas sobre mulheres teve início faz nesta sexta-feira 20 anos, em Pequim. Os ecos persistem até hoje. Perguntámos a representantes de várias áreas o que foi feito e o que falta fazer em Portugal. Falam de avanços e de recuos.

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Sara Falcão Casaca, investigadora do ISEG Miguel Manso
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António Ramalho, presidente da Infraestruturas de Portugal Rui Gaudêncio
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Mariana Monteiro, actriz e “champion” das Nações Unidas na campanha Pequim +20 Miguel Manso

4 de Setembro de 1995, Pequim: representantes de 189 governos e 5000 elementos de 2100 organizações não governamentais (ONG) juntam-se na capital chinesa para debater os direitos das mulheres. A cerca de 40 quilómetros do centro, em Huairou, 30 mil activistas dos quatro cantos do globo reúnem-se também, num evento paralelo. As questões sobre “direitos sexuais” levantam polémica — para o Vaticano a expressão “direitos sexuais” pode ser interpretada como luz verde para o aborto. E o que significa “género”? No documento de trabalho entregue aos delegados a palavra vem, pelo sim, pelo não, entre parênteses.

O discurso de Hillary Clinton, com as suas críticas indirectas à política do filho único na China, não cai bem. E deve-se falar de “igualdade” ou de “equidade”? — questionam os delegados de países islâmicos. A delegação oficial portuguesa é liderada por Manuela Ferreira Leite, então ministra da Educação.

Uma manifestação de lésbicas em Huairou é considerada pelos media internacionais um episódio inédito no país. Em Huairou, de resto, há alguma frustração entre os activistas. Ao contrário do que é habitual nas conferências das Nações Unidas, os encontros paralelos de ONG costumam acontecer mais perto do local onde se reúnem os representantes dos governos — o que funciona como forma de pressão. Desta feita não. “Estive em Pequim na sessão de abertura da conferência” a 4 de Setembro, no Grande Auditório do Povo na Praça Tiananmen, lembra Manuela Tavares, investigadora em estudos sobre mulheres e dirigente da associação UMAR. “Uma orquestra tocou o Hino da Alegria. As bancadas estavam cheias de mulheres. Depois, um autocarro levou-nos de volta a Huairou.”

Mas apesar de todas as polémicas, no final da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres — é este o nome oficial — é aprovada a Declaração de Pequim, onde os Estados se comprometem com a ideia de que a perspectiva de género deve estar presente em todas as suas políticas, e a chamada Plataforma de Acção de Pequim, “o plano mais progressivo que jamais havia existido para o avanço dos direitos das mulheres”, como é descrito no site das Nações Unidas.

“Foi a última grande conferência das Nações Unidas sobre os direitos das mulheres e a igualdade”, nota Ana Sofia Fernandes, secretária geral da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM), nas respostas que fez chegar por escrito ao PÚBLICO. E ainda hoje se considera que a Plataforma de Acção de Pequim marca um momento de charneira. “Continua a ser o documento orientador porque pela primeira vez houve uma abordagem transversal da questão”, diz Manuela Tavares.

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Foram identificadas 12 áreas-chave, como a educação e formação, a saúde, a violência, a vida económica, o acesso e partilha do poder, a participação nos meios de comunicação social, os direitos das raparigas. E definidos 52 objectivos e cerca de 626 medidas. Os pontos de partida de cada país eram muito distintos. “Depois dessa, não houve mais conferências mundiais sobre direitos das mulheres”, explica ainda Manuela Tavares, mas sim avaliações periódicas, a que se foi dando o nome de “Pequim +5 [anos]”, “Pequim +10” ou “Pequim +20” destinadas a fazer o balanço dos progressos alcançados.

Estamos em ano de “Pequim +20”.

IVG, avanços e recuos
Olhemos para Portugal. Perguntámos a pessoas de várias áreas que marcos encontram na história dos direitos das mulheres portuguesas dos últimos 20 anos, que progressos assinalam. E que desafios. Duarte Vilar, director executivo da Associação para o Planeamento da Família, começa por sublinhar que “o que a conferência de Pequim fez foi, sobretudo, dar força ao que vinha sendo feito em Portugal, país que já tinha dado passos muito importantes em matérias como planeamento familiar, a prevenção da violência, ou igualdade na família”. A disponibilização de consultas de planeamento nos centros de saúde, por exemplo, é de 1976.

Depois, “fez-se um caminho”, prossegue. Uma das consequências mais directas “foi que passou a haver planos nacionais da igualdade” — o primeiro em Portugal é de 1997 — o que significa incluir a perspectiva da igualdade nas políticas das diferentes áreas.

Tendo que eleger uma data especialmente marcante, de então para cá, Duarte Vilar destaca a da aprovação da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) a pedido da mulher, em 2007. Contudo, chegados a 2015, assistiu-se “a um retrocesso”, considera. Não apenas “ao nível dos direitos das mulheres”, mas “da própria maneira como as mulheres são vistas”. Como assim?

“As alterações aprovadas pela Assembleia da República, a 22 de Julho último, ao obrigarem a mulher [que quer fazer uma IVG] a ter apoio psicológico, como se ela fosse incapaz de tomar uma decisão sem ajuda técnica, são uma afronta.” A possibilidade de presença nas consultas de médicos objectores de consciência, também aprovada, é outro problema identificado por Vilar. “Esta alterações reabriram, de novo, a discussão na sociedade portuguesa sobre os direitos das mulheres.”

Não é o único crítico. Sara Falcão Casaca, investigadora do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), em Lisboa, diz que as mudanças a deixaram “estupefacta”. Mas diz mais: “Depois de Pequim os governos e os países avançaram de forma distinta. Mas relativamente ao nosso país uma das coisas que me preocupa é a falta de consistência das políticas. Por exemplo, vejo um Governo conservador, com uma secretária de Estado para a Igualdade [Teresa Morais] a puxar imenso por uma participação mais equilibrada das mulheres na tomada de decisão na esfera económica, como nenhuma outra tinha feito até agora, e, ao mesmo tempo, na mesma legislatura, esta maioria faz recuar a IVG, para nossa surpresa. Estas inconsistências são um obstáculo à igualdade.”

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E qual foi o maior avanço? “A educação, sem dúvida”, responde. Não só as mulheres são hoje a maioria (cerca de 60%) das que saem das universidades com uma licenciatura, como “são praticamente 55% dos que concluem doutoramentos”. Mas e depois do diploma?

Talento desperdiçado
O acesso das mulheres a cargos de chefia nas empresas e as disparidades salariais são encarados pela maioria dos interlocutores do PÚBLICO como as áreas onde persistem os maiores problemas. Comece-se pelo primeiro ponto. Um dos dados mais usados para medir o quão lenta tem sido a mudança costuma ser este: só 9% dos membros dos conselhos de administração das maiores companhias listadas na bolsa em Portugal são mulheres.

António Ramalho, presidente da Infraestruturas de Portugal, a empresa pública que resultou da fusão entre a REFER e a Estradas de Portugal, recebe-nos no seu gabinete, durante uma interrupção do conselho de administração que é constituído por sete elementos, dos quais apenas uma mulher. Reconhece que é uma distribuição desequilibrada.

Mas tem outro número que coloca a empresa melhor na fotografia da igualdade: 33% das dirigentes (directores e subdirectores) são mulheres, numa empresa onde a engenharia é a área do conhecimento que predomina (área que é, nota, das poucas onde ainda há mais homens do que mulheres nas universidades). Na antiga Estradas de Portugal, que integrou Fórum Empresas para a Igualdade, criado pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), eram 43% e uma administradora entre três.

O diagnóstico mais global que António Ramalho faz não é totalmente animador: “Houve nos últimos 20 anos progressos claros do ponto de vista da diversidade das funções desempenhadas por homens e mulheres na sociedade portuguesa. Houve uma valorização do estatuto da mulher enquanto trabalhadora e dirigente. Mas estes 20 anos são, ainda assim, anos de alguma desilusão, quer do ponto de vista internacional, com espaços territoriais grandes na nossa geografia mundial onde a mulher não é ainda valorizada como o homem, por várias razões, inclusivamente religiosas. Mas também na sociedade ocidental e, sobretudo, em Portugal.”

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Nas últimas duas décadas, as portuguesas estudaram, reforçaram a sua presença no mercado de trabalho, mas “não houve a correspondente valorização nas empresas”. Impera, em suma, “um modelo de desperdício de talento”, e uma cultura que o alimenta. Primeiro na Estadas de Portugal e agora na Infraestruturas de Portugal, a política é, garante António Ramalho, apostar nas mulheres. “Não é só uma espécie de projecto estratégico, é um projecto oportunista, isto é: temos uma oportunidade de capturar talento feminino se formos uma empresa mais amiga da igualdade de género do que outras empresas.”

Como? Com coisas que começam no chamado “marketing interno” — recentemente “fizemos uma exposição interna relevando o papel das primeiras directoras de obras, já lá vão 40 anos”. Passam pelas medidas de apoio à família — “temos um infantário dentro de ‘casa’” e incentiva-se os pais homens a usufruírem dos seus direitos e deveres enquanto trabalhadores com filhos pequenos, prossegue. E há ainda “uma equipa interna” que tem como função avaliar o que pode mudar nas rotinas da empresa “para favorecer o papel que as mulheres podem ter na direcção”, por exemplo, “estudando horários flexíveis, ou tornando os tempos das reuniões compatíveis com as funções maternais e paternais”.

O problema da conciliação
Este é o ponto, dizem outras vozes. Há ainda carências ao nível das ofertas “na sociedade e nas empresas que facilitem a conciliação” entre a vida profissional e família, afirma o director de Recursos Humanos da Auchan Portugal Hipermercados, Jorge Filipe. E ao nível das mentalidades “há ainda um caminho a percorrer”.

Não deixa contudo de sublinhar os avanços observados nas últimas duas décadas: a aprovação de legislação de “promoção da igualdade”, a “maior participação das mulheres no mercado de trabalho”, o paradigma da “empresa socialmente responsável”, que desenvolve planos de acção que incluem o princípio da igualdade.

O Grupo Auchan tem aliás sido distinguido pela sua actuação neste campo — a última vez foi este ano, ao receber uma menção honrosa da CITE e da Comissão para a Igualdade de Género. Várias medidas têm sido tomadas, diz Jorge Filipe, como a existência de “uma série de programas de gestão de talentos e competências”, a abertura de dois colégios que funcionam 362 dias por ano, das 7h00 às 00h30, prioritariamente para filhos dos funcionários que trabalham por turnos, ou a abertura de uma Linha Alerta para tratamento de reclamações que garante a confidencialidade aos trabalhadores que queiram denunciar, por exemplo, situações de discriminação.

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Hoje o grupo tem 8000 colaboradores, 65% mulheres, 45% das chefias exercidas por mulheres. Que também representam 25% do Comité de Direcção, o órgão máximo da empresa.

Esta não é a regra. E em Junho a secretária de Estado Teresa Morais assinou um acordo com 13 empresas para que tenham 30% de mulheres nos conselhos de administração até 2018. E disse que gostava que outras cotadas no PSI20, caso, da Cofina, da Altri e da Portucel, tivessem feito o mesmo. “Mas a verdade é que os seus responsáveis entendem não dar prioridade a este assunto, e estão no seu direito”, declarou.

Salários, o pior indicador
Os hiatos salariais são outra face da desigualdade. A PpDM apresentou os cálculos mais recentes da European Women’s Lobby: “As previsões indicam que na ausência de medidas estruturais, serão necessários mais de 100 anos para eliminar a disparidade de género no emprego, no trabalho remunerado e não-remunerado (30 anos para atingirmos a igualdade no emprego, 70 anos para salários iguais para homens e mulheres e 40 anos para a partilha equitativa das tarefas domésticas.” Em suma: “A ausência de uma estratégia alargada mostra que a igualdade de género não é considerada de forma séria.”

Dados de 2012, divulgados em Março pela Pordata, mostram que entre os quadros superiores, uma mulher em Portugal recebe em média menos 30% do que um homem, pelas mesmas funções, e que essa diferença aumentou ligeiramente desde 1995 (ver infografia). António Ramalho diz que não há nada de racional nisto e que só razões de outra ordem podem explicar o facto — na sua empresa, garante, as diferenças salariais são mínimas (3% nos cargos directivos que se explicam pela antiguidade).

A investigadora Sara Falcão Casaca, que é também coordenadora-geral do projecto Igualdade de Género nas Empresas, não tem dúvidas sobre o quão “crítico” é este aspecto “É um dos nossos piores indicadores.” No Índice Global das Diferenças de Género, do Fórum Económico Mundial, Portugal ocupa o 39.º em 142 países, lembra. Mas quando se olha para as diferenças entre o que ganha um homem e uma mulher, o país apresenta-se com o 97.º maior hiato do mundo. “Avançou-se muito pouco.”

Há outro aspecto que preocupa a investigadora: já depois de Pequim, em 2000, a União Europeia definiu como meta ter 60% das mulheres a trabalhar — Portugal já tinha nessa altura. “Mas recuámos. Hoje, temos o valor mais baixo de emprego feminino dos últimos anos: 56,6%. É uma das principais sombras do ponto de vista da independência económica das mulheres.”

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A “lei da paridade”
Aos 26 anos, Mariana Monteiro, actriz de telenovelas e séries televisivas como Mulheres de Abril ou Água de Mar, era ainda uma criança quando a Plataforma de Acção de Pequim foi notícia nos jornais. Mas este ano tornou-se parte de uma campanha promovida pelas Nações Unidos a propósito dos 20 anos da conferência na capital chinesa. Foi nomeada “champion” para a Igualdade de Genéro da ONU Mulheres — tal como Salif Keita, músico do Mali, ou a actriz Nicole Kidman. Todos têm como missão falar ao longo de 2015, nos seus países, dos direitos das mulheres.

Mariana Monteiro também elege as disparidades salariais como um dos principais atrasos. “Houve muitos progressos nos últimos 20 anos mas há coisas que parecem estar completamente enraizadas.” Para alterá-las, considera essencial trazer os homens para a discussão. “Por isso acho muito importante a campanha pela qual a Emma Watson tem dado a cara, a HeForShe, que diz que a luta pela igualdade entre homens e mulheres tem de ser também uma luta dos homens”, porque ambos ganham com isso se se progredir na igualdade, acredita.

De progressos começa também por falar Manuela Tavares. A chamada “lei da paridade”, em 2006, que estabelece que as listas eleitorais dos partidos têm de ter pelo menos 33% de cada sexo, e a legislação que, ao longo dos anos, foi sendo aprovada em matéria de combate à violência doméstica, fazem parte do que mais importante aconteceu no país pela igualdade.

Já como aspecto crítico elege “a prevenção da violência doméstica, nomeadamente na abordagem que podia ser feita nas escolas, mas não é”. Lembra que apesar dos avanços legislativos nesta área, mais de 40 mulheres foram mortas por companheiros no ano passado. E que os números não têm diminuído. A prevenção é, pois, uma prioridade.

Mariana Monteiro dá o seu próprio exemplo: não se recorda de, na escola, ter alguma vez sido tema de debate a violência, a igualdade, ou os direitos das mulheres. “E há cada vez mais casos de relações violentas no namoro, entre os jovens. Se são assim em jovens, como será no futuro?”

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