Canções sobre gansos lunares e desaparecidos no Atlântico

As Landshapes assinam em Heyoon um disco que se joga no equilíbrio entre a atracção pela melodia e a subtil introdução da dissonância. E ao serviço de histórias pouco convencionais no rock.

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A 1 de Agosto de 2008, a artista alemã Agnes Meyer-Brandis estava em Novosibirsk, na Sibéria, para assistir a um eclipse solar total.

Não apenas assistir, na verdade, uma vez que empreendeu então a primeira das suas experiências do projecto Moon Goose: juntou 13 gansos junto ao rio Ob, prendeu-os a uma carruagem, com um paraquedista russo contratado para a pilotar, e ficou à espera de ver se o fenómeno cósmico fazia com que os gansos partissem em direcção à Lua. A ideia chegara-lhe da descoberta do livro The Man on the Moone, do bispo inglês Francis Godwin, publicado em 1638, considerado um das obras fundadoras da ficção científica e que relata a história de Domingo Gonzales, um homem que alcança a Lua conduzindo uma carruagem puxada por “gansos lunares”.

Ader

Devido aos resultados inconclusivos da primeira experiência, Meyer-Brandis não se ficou por aí. Passados três anos, instalou-se numa quinta em Abruzzo, Itália, para onde foi com onze ovos de ganso. Viu nascer os animais, baptizou-os com nomes de astronautas, e durante um ano viveu exclusivamente para e com eles. Tornou-se a sua mãe, treinando-lhes o voo e, mais do que isso, preparando-os para empreenderem a sua viagem até à Lua e a sua posterior sobrevivência através da simulação num ambiente fechado da paisagem, da gravidade e da densidade do ar que os gansos encontrariam na superfície lunar. Para se certificar das suas competências, consultou criadores na Alemanha e em Itália (para a vida na Terra), assim como cientistas da NASA (para a vida na Lua).

“A investigação bio-poética” dos “gansos lunares”, como cunhou o projecto, tornou-se uma obsessão para Meyer-Brandis, sendo depois adoptada também em estado de transe obsessivo por Luisa Gerstein, vocalista e guitarrista do grupo londrino Landshapes. “É um projecto artístico mas tratado como uma espécie de realismo mágico, de uma forma muito séria, e gostei muito disso. Na altura estava prestes a começar uma grande viagem e parte de mim ligou-se muito àquela história e ao seu sentido de aventura.”

Gerstein  tomaria a história como ponto de partida para a escrita de Moongee, um dos temas mais tensos de Heyoon, segundo álbum das Landshapes. Mas Moongee não está em má companhia. Luisa confessa estar cada vez mais interessada em escrever sobre histórias muito além das suas próprias experiências, tais como a morte do artista conceptual holandês Bas Jan Ader durante uma tentativa de travessia do Atlântico numa pequena embarcação, o processo de aceitação da sua identidade feminina por parte de um jovem ou a inspiração numa das narrativas curtas ou microscópicas da autora norte-americana Lydia Davis. Nada de estafadas canções sobre amores e desamores, nada de crípticas histórias pessoais que só a si interessam e aos seus delírios narcisistas, nada de abstracções sem nexo que nada dizem nem querem dizer.

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Música bissexual
Existindo num plano semelhante ao das Stealing Sheep, as Landshapes são igualmente produto de um psicadelismo caprichoso, embora não carregando na folk com ambição de banda sonora de rituais pagãos das Sheep. Tanto incorporam uma pop shoegazer que calhariam bem aos Lush (François) como canções que as Ex Hex de Mary Tymony pagariam a preço de ouro (“Ader”) ou um arrebatamento de rock inquieto à melhor maneira das Throwing Muses (excelente Stay). Há em Heyoon quase um entusiasmo incontido pela abertura a uma especialização prosseguida após o disco de estreia Rambutan, de 2013. Em vez do deslumbramento do quarteto com as suas potencialidades de multi-instrumentistas, resolveram assumir os seus lugares mais conseguidos, fazendo das suas canções objectos mais focados e menos graciosas (mas muitas vezes inconsequentes) rebaldarias sonoras tão cheias de graça quanto de pouca profundidade. A grande virtude de Heyoon é que, ao assumir este processo, não deixaram que a música afunilasse e se tornasse achatada, sem soluções, demasiado igual e si mesma.

Pelo contrário, há uma certa ansiedade de libertação na música das Landshapes desde que uma gralha no cartaz de um concerto parisiense as empurrou na direcção da mudança. Antes chamavam-se Lulu and the Lampshades e tiveram um meteórico sucesso (muito em sintonia com os epifenómenos da era da internet) ao publicarem online o vídeo de uma versão de Miss Me When I’m Gone?, original da Carter Family gravado pelos Mainers Mountaineers em 1937, para duas vezes e dois copos de plástico. Transformou-se nma praga. “Já não nos revemos nisso, tornou-se algo que escapa por completo ao nosso controlo, é um monstro de pleno direito”, ri-se Luisa. “Foi engraçado mas às vezes damos um passo atrás e apercebemo-nos que, após sete anos, isto ainda continua vivo por aí, o que pode ser frustrante nalguns momentos porque não tem nada que ver com as Landshapes.”

Em Paris, o acaso de alguém ter corrompido a palavra Lampshades para algo de mais original como Landshapes tornou-se o pretexto perfeito para o grupo concretizar um corte com o passado. Ao mesmo tempo que a proximidade fonética garantia uma ligação que não despistasse em absoluto os seus seguidores, a nova designação permitia ultimar e até pressionar a formação de uma nova identidade que já estava em construção. “Apesar de ser muito divertido, aquilo que então fazíamos era muito errático”, descreve Luisa. “Quando arranjámos uma sala de ensaios a sério e começámos a tocar juntos durante horas a fio a nossa sonoridade mudou muito rapidamente.” E de tal forma foi o um esforço colectivo que a vocalista acredita que nenhum dos quatro, isoladamente, “conseguiria sair do grupo a escrever sozinho uma canção das Landshapes.”

Até porque uma das armas das Landshapes é a permanente gestão do equilíbrio entre a maior predisposição melódica de Luisa Gerstein e o gosto pela sabotagem dissonante maquinada pela baixista (e segundas vozes) Heloise Tunstall-Behrens. Heloise é aquela que armadilha o caminho para que o rock mais abrasivo se consiga intrometer nas canções de uma Luisa que numa outra vida que leva em paralelo dirige um coro de 25 vozes femininas chamado Deepthroat e que canta de Nina a Sade e Wildbird & Peacedrums. “É provável que a nossa música seja bissexual”, atira Luisa sobre a forma como esse equilíbrio é atingido. E é bem capaz de ser isso.


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