O pai da meia União

Com 90 anos feitos esta semana, Jacques Delors enganou-se nos filhos que queria dar à Europa. Em vez de um euro, deram-lhe um erro; em vez de um acordo Schengen, saiu-lhe um Schäuble; e quando pediu a coesão económica, deram-lhe um Coelho tecnofórmico. Vai chamar pai a outro, União Europeia.

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O euro protegia-nos até das nossas asneiras. É este o defeito de construção que temos de reparar hoje”, disse à Euronews o velho político, há meses. É uma frase a que podemos chamar, em bom passos-coelhês, uma meia verdade e um meio mal-entendido, senhor Jacques Delors. Porque já não há nada para reparar depois do que se passou entretanto em Bruxelas, Berlim e Atenas: está tudo partido. Não resta nem metade do “sonho europeu” que o senhor inculcou de maneira deveras inconsciente na nossa cabeça.

Terá de acrescentar que a moeda euro, por defeito à nascença, agora só consegue escolher, nas eleições, os primeiros-ministros e presidentes da República mais preocupados com o seu quintal do que com o seu continente. E quando inesperadamente um povo escolhe outra hipótese de pensar a “Europa da coesão e da solidariedade”, que afinal trouxe enormes desigualdades, corrupções e desequilíbrios, enterra-se o grego no quintal. Meio vivo, meio morto e com “uma faca ao pescoço”, como disse o outro.

Em língua coelhesa, Jacques Delors, o decano dos cidadãos europeus, o mais ilustre unionista desde Jean Monnet e Robert Schuman, acreditou em “contos de crianças”. Não adivinhou que os países europeus, que teriam o objectivo nobre de acabar com as seculares guerras entre si, afinal se iriam revelar, em 2015, meninos e meninas egoístas que só pensam em dinheiro e em ficar com o brinquedo e com o lanche. Como diz, empoleirado num muro, o ovo gigante do conto de crianças Alice no País das Maravilhas (Alice in Wunder Deutchland, na tradução alemã), o que interessa não é saber se uma coisa se pode ou não dizer. O que interessa é saber quem manda.

Jacques Delors (Paris, 20 de Julho de 1925), último exemplar da comatosa Alma da União Europeia. Portador da Medalha de Honra da União Europeia. Senhor de idade que, hoje em dia, é visto a resmungar contra os medíocres que se lhe seguiram em Bruxelas e Estrasburgo. Às vezes, pega na bengala e pensa se não deveria utilizá-la nas costas de alguém. Coça a cabeleira branca e admite que teve algumas culpas. Por exemplo, no “dossier Delors” por si escrito, mesmo antes da inauguração do euro, pedia que a Grécia tivesse um período de cinco anos de adaptação antes de entrar em pleno na moeda única. ’Tá bem, abelha. Mas ele próprio, o nonagenário Delors, acreditou que uma coisa tão esquisita (afinal de contas era uma moeda com fundo poético, inventada por idealistas) funcionaria para sempre, irreversível nos mercados e nas maturidades e nas tecnoformas deste mundo. Afinal, parece que o euro é tão “irrevogável” como o é o parceiro do outro.

Quando Jacques Delors saiu do poder, nunca mais ninguém lhe ligou nenhuma. François Hollande lembra-se às vezes de que se esqueceu dele e faz de conta que é seu discípulo. Fez isto, por exemplo, no 90.º aniversário. Mas passa-lhe depressa, entretanto começam as comparações entre a dimensão política dos dois homens e o Presidente de França foge na motoreta dos affaires amorosos antes que se queime.

Delors ficará para a história como o homem que dignificou e honrou o papel de presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995. Sim, houve um tempo em que era um cargo com prestígio. Várias enciclopédias do futuro poderão referir — na suas entradas sobre a defunta União Europeia, (já morta e enterrada) — o nome de Jacques Delors como “aquele que não foi nenhum Durão Barroso”.

Autodidacta em vários ramos do conhecimento, ganhou destaque como ministro das Finanças francês, entre 1981 e 1984. Já como presidente da Comissão Europeia, da então CEE (Comunidade Económica Europeia), apoiou e conduziu o processo de adesão de Portugal e de Espanha, em 1986. Três anos depois, desde a primeira hora da queda do muro de Berlim, esteve ao lado dos alemães na reunificação do país (a RFA e a RDA, nesta última república socialista nascera uma anafada futura chanceler). Foi uma altura curiosa em que, para bem dos alemães e, pensava-se, para bem de todos, Delors teve de mandar às urtigas uma série de “regras invioláveis”, coisa que agora parece ser impossível aos alemães, nein, nein, nein. Mas isso era no tempo em que os políticos alemães pareciam gente pacífica, ainda não se tinham revelado vilões do 007 (a anafada chanceler Merkel e o seu Schäuble zangado em cadeira de rodas). Por falar nisso, quando ao retirado Delors lhe apetece ver um filme de terror, para repousar da insuportável realidade contemporânea, hesita entre os filmes Frankenstein, O Massacre do Texas e uma cópia da gravação da assinatura da reunificação alemã, com Helmut Kohl de caneta na mão e, atrás, com um sorriso enigmático, Schäuble e Merkel. Estes dois já estavam a ver a coisa como ia ser, quando se prometia um futuro de paz e prosperidade para os alemães (e até para os indigentes e preguiçosos povos do Sul). Helmut Kohl, outro leão enganado pela história, suspira Delors enquanto ouve Beethoven.

Delors também é o autor do famoso Erasmus, também conhecido como “Orgasmus”, programa de intercâmbio de estudantes pela Europa. Mas Pedro Passos Coelho, agora tão activo em Bruxelas a boicotar reestruturações gregas em cima das eleições portuguesas, não precisou de sair do país para intercambiar belos fundos europeus para aeródromos sem aviões. Também o tecnofórmico deve muito a Delors e ao seu sonho. E por estas e por outras é que a Europa está meio falida. Ou isto é meia verdade, ou meio mal-entendido, ou um completo descaramento.

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