O “Estado Novo” da ortografia

Com o AO90 não há “evolução”, “modernização” e “progresso”, há sim um retrocesso para antes de 1986… e de 1974.

A 8 de Maio último, em Famalicão, numa sessão de apresentação da sua biografia, Rui Rio afirmou: “Uma minoria impor-se a uma maioria, compreendo e aceito numa ditadura. Em democracia, respeita-se as minorias, mas quando elas chocam com as maiorias, tem de prevalecer o interesse colectivo.”

O ex-presidente da Câmara Municipal do Porto estava a referir-se concretamente aos pilotos da TAP, então em (mais uma) greve, mas aquelas suas (lógicas e sensatas) palavras podiam aplicar-se a qualquer outra minoria. Como, por exemplo, a dos que têm vindo a preconizar activa e persistentemente a alteração da ortografia da língua portuguesa. Entre as minorias identificáveis no nosso país serão uma das mais pequenas: mesmo entre os que estudam, ensinam e divulgam o nosso idioma pode ser considerada uma minoria de uma minoria, porque a maior parte dos seus colegas, considerando os dados disponíveis, foram e são contra o denominado “Acordo Ortográfico de 1990”. E, segundo artigo no jornal i de 28 de Maio último, eles são principalmente quatro: Carlos Reis, Fernando Cristóvão, João Malaca Casteleiro e Pedro Dinis Correia. A questão principal mantém-se: porquê, como, é que este estes quatro “cavaleiros do “apocalise”“ da cultura nacional, com mais uns quantos obedientes e estridentes “escudeiros” (entre os quais Edviges Ferreira, Francisco Seixas da Costa, José Carlos de Vasconcelos e Lúcia Vaz Pedro), obtiveram e exerce(ra)m tanta influência sobre o poder político em Portugal…

… A ponto de, “cavalgando” não de Braga mas sim de bafientos gabinetes universitários, terem protagonizado uma nova “revolução de Maio”, pois que, supostamente, iniciou-se no dia 13 do mês cinco deste ano o “Estado Novo” da ortografia, cujo objectivo último – e ilusório – é a “unificação” da ortografia do Minho a Timor. Aliás, o título de outro artigo do i, mas de 1 de Junho de 2014, era precisamente “Palavras de todas as cores para usar do Minho a Timor”, e tinha como tema principal o denominado “Vocabulário Ortográfico Comum”, que como que representa a “Constituição de 1933” deste “novo (e mau) Estado” do Português; aquele pouco deve ao rigor e aquela pouco devia aos direitos humanos, e ambos são, foram, o resultado de mentalidades não democráticas. Ironicamente, Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da (In)Cultura, que em Janeiro último, durante a apresentação da “”Ação” Cultural Externa” (“eco” da Acção Nacional Popular?), proclamou que em Portugal “as novas regras (do AO90) estão a ser aplicadas sem atropelos”, assim admitindo que vive numa realidade alternativa, como que evocou o relato oficial do referendo que, precisamente, “ratificou” a Constituição de 1933, e que garantia que aquele decorrera “com absoluta ordem e tranquilidade em todo o país”…

Porém, reitero que o “Estado Novo” que constitui a maior referência da actual a(du)lteração ortográfica não é tanto o de António Oliveira Salazar mas sim mais o de Getúlio Vargas, que em 1943, num assomo de nacionalismo extremo de cariz fascista, procedeu à radical e rápida alteração no perfil das palavras que passou a ser característico do Brasil. Mais do que anti-europeu, o corte das “consoantes mudas” decidido pelo ditador vindo do Rio Grande do Sul foi anti-português; foi como que um grande escarro cuspido por cima do Atlântico e que hoje, mais de 70 anos depois, todos os que se submetem ao AO90 deste lado do oceano apanham com a boca e engolem. A imposição do “aborto pornortográfico” em Portugal é pois também como que a aceitação de que são verdadeiros os (desfavoráveis) “retratos” de portugueses dados por muitas anedotas brasileiras; é como que o reconhecimento das (infundadas) queixas de muitos (não de todos, esperemos que não da maioria dos) brasileiros de que os problemas do seu país se devem – ainda hoje! – a Portugal… quase 200 anos depois de o nosso país ter deixado de ser a potência colonizadora, e, logo, deixado de ter qualquer responsabilidade pelo destino da Terra de Vera Cruz. Como “castigo”, o “senhor” passou a ser o “servo”, e, mais pequeno, menos populoso e economicamente mais frágil, submete-se à vontade daquele que é o seu oposto naqueles aspectos. Curiosamente, existem “acordistas” que aceitam a “lei do mais forte” em relação ao Brasil de Dilma Rousseff mas que a rejeitam em se tratando da Alemanha de Angela Merkel… Seria óptimo que os nossos “primos de além-mar” finalmente se consciencializassem da acumulação de danos, em analfabetismo e em iliteracia, ocorrida durante décadas a utilizar uma ortografia que rejeita a Etimologia… e dela se libertassem definitivamente. Até isso acontecer, e se é que alguma vez vai acontecer, não há qualquer obrigação da nossa parte de prescindir da nossa soberania e de mostrar solidariedade no erro.

Entretanto, e “infelizmente”, a “vingança” não se estende a todas as ex-colónias. É indesmentível o facto de, mais do que terem sido secundarizados no processo de “unificação” da ortografia, que os países africanos de língua oficial portuguesa foram especialmente visados por aquele – processo que, nunca é de mais lembrar, em 2008 o próprio João Malaca Casteleiro classificou como fundamentalmente político e não cultural. Há um registo vídeo feito também em 2008 de Fernando Cristóvão a admitir a sua preocupação, e mesmo indignação, com a possibilidade de Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe virem a ter as suas próprias ortografias, diferentes da portuguesa e da brasileira – algo que, obviamente, seria perfeitamente legítimo como países independentes que são. Sim, além de neofascista – a “uniformização” da ortografia não parece assustar muitos “acordistas” à esquerda sempre prontos a berrar contra os “ataques”, reais ou imaginários, às “conquistas de “abril”“ – o AO90 é neocolonialista, e disso já se aperceberam observadores em Angola – como António Filipe Augusto – e em Moçambique – como Feliciano Chimbutane.

Já não restam quaisquer dúvidas… e, aliás, antes, nunca houve muitas: o AO90 não tem, não traz, quaisquer benefícios, melhorias, utilidades, vantagens; e causa dificuldades e problemas que previamente não existiam. Tudo o que se prometeu ou era uma mentira ou uma previsão (muito) optimista que não se concretizou: não só não há “unificação” como há cada vez mais confusão e separação; continuam a ser feitas diferentes edições de livros consoante o(s) país(es), e filmes portugueses  continuam a ser legendados quando exibidos do outro lado do Atlântico – como “Os Maias”, cujo realizador, João Botelho, disse que foi “para que as pessoas possam entender; somos países irmãos, mas com uma língua diferente” (não, a língua não é diferente, mas o vocabulário sim, o que torna inviável qualquer tentativa de “unificação”); a língua portuguesa não ficou mais prestigiada internacionalmente, e tanto assim é que a FIFA, após o Campeonato do Mundo de Futebol no Brasil em 2014, eliminou a versão “lusófona” do seu sítio na Internet. Em última análise, o AO90 acontece(u) apenas para alimentar o enorme ego, a vil vaidade, dos acima citados “cavaleiros” e dos seus “escudeiros”, da minoria de uma minoria, que querem poder gabar-se, como obra das suas vidas, de terem deixado a sua marca na ortografia, por mais arbitrária, ilógica e ridícula que essa marca seja. Mas é este um motivo suficiente para que toda uma nação, e o seu passado, presente e futuro, sejam prejudicados?

Portugal é neste momento o único país que de facto, pela força, pela prepotência do Estado, impôs a utilização oficial do AO90; mas ilegalmente, porque leis nacionais e internacionais foram desrespeitadas, e ilegitimamente, porque não houve um mandato para se proceder a uma mudança tão drástica num elemento essencial da identidade nacional. Pelo que o nosso país voltou a estar, não tanto “orgulhosamente só” mas mais, na verdade, vergonhosamente só. Solitário, isolado, no âmbito da Europa, da União Europeia, que se vangloria da multiplicidade linguística; em todos os outros países que a integram, vários dos quais (ab)usam (d)o “ph”, nunca se procedeu a qualquer alteração “revolucionária” deste género. O nosso país não saiu da moeda única mas, com o AO90, saiu dos costumes e das normas culturais que caracterizam as nações civilizadas do Velho Continente, do Ocidente. Essas nações partilham uma herança milenar que tem como dois valores maiores o Grego e o Latim, idiomas que o Ministério da Educação e Ciência anunciou em 2015 querer expandir no ensino nacional, e que representam, tal como o Inglês recentemente alargado ao primeiro ciclo, refutações totais das causas, características e consequências da alegada “uniformização” ortográfica; enfim, são iniciativas que demonstram o desnorte que grassa no Nº 107 da Avenida 5 de Outubro em Lisboa (e não só), onde Nuno Crato, autor do livro “O “Eduquês” em Discurso Directo – Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista”, é actualmente e “diretamente” o (incapaz) “capataz” da forma mais extrema de “”eduquês” construtivista” - o “acordês”.

Com o AO90 não há “evolução”, “modernização” e “progresso”, conceitos que os seus (poucos) convictos defensores constantemente apregoam mas cujos significados não entendem realmente; pelo contrário, há sim um retrocesso para antes de 1986… e de 1974.     

Jornalista e escritor

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