Elogio do pensamento

Uma das obras fundamentais da teoria crítica da Escola de Frankfurt numa edição oportuníssima

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Eis o repto de O Eclipse da Razão: pensar, pensar, confiando no homem Fred Stein/DPA/Corbis

Muitas décadas depois da sua primeira edição, O Eclipse da Razão continua a sacudir o leitor, na esperança de que este possa (e queira) continuar a pensar. As reflexões de Max Horkheimer não perderam pertinência, interpelam as circunstâncias políticas e sociais do presente, bem como as ideias e os processos que as determinam. Saúde-se a sua edição pela Antígona, numa tradução exemplar de João Tiago Proença.

Baseada numa série de palestras realizadas na Universidade de Columbia (EUA) em 1947, O Eclipse da Razão revela um sobressalto intelectual, provocado pelo declínio da razão enquanto conceito que aferia “o destino humano”. Subordinada a meios e fins, deixara de reflectir uma estrutura objectiva da realidade na qual o homem apreendia a ordem eterna das coisas e que guiava a acção humana. Não correspondia mais a uma “faculdade de conhecimento ético, moral e religioso”, mas antes a um enunciado vazio ou a um mero instrumento que, em outras funções, calculava probabilidades ou garantia efeitos. A afirmação do interesse pessoal como núcleo da ideologia oficial do liberalismo, não sendo a único factor explicativo (Horkheimer menciona também o iluminismo e o divórcio da religião), formalizara-a com uma severidade inédita, afastando-a do pensar especulativo.

Alterara-se, assim, a relação dos homens com as ideias e os valores. A liberdade, a humanidade, a igualdade ou a justiça estavam agora esvaziados de memória, de vida interior. Não podiam negar a injustiça e a desigualdade do mundo, pois os homens desconheciam a sua força negativa, as suas origens. Tornaram-se, escreve o filósofo, indiferentes e falsas. O século XX é o palco da aceleração de um processo que, segundo Horkheimer, o pragmatismo americano vem justificar e legitimar. Ao advogar a “experimentação activa” como a principal forma de experiência, esta corrente teórica preconiza a adequação dos sentidos e das acções a finalidades e a subordinação da verdade das ideias à realização das suas expectativas. 

“Pensar em laboratório”, é assim que Horkheimer descreve o pragmatismo, dominante numa “sociedade que não tem tempo para recordar e meditar”. O pano de fundo da sua reflexão é a América do pós-guerra mas estende-se, sem estertor, à acção dos decisores políticos e ao poder da tecnocracia nas sociedades actuais. O autor, porém, rejeita aproximá-la de uma visão dita reaccionária ou conservadora. Não deseja a destruição da razão subjetiva, ou pragmatista, em prol do cinismo da lei do mais forte ou de uma ideologia que despreza as massas, pelo contrário. Insiste, sim, na crítica continuada da sua utilização.

E nessa crítica, Horkheimer depara-se com o “aliado” poderoso do pragmatismo: o positivismo que hipostasia a ciência. Trata-se de uma tecnocracia filosófica que faz da filosofia um mero derivado e testa todos os valores com base em causas e consequências. Para o positivista, a verdade só poder ser investigada e conhecida na ciência, nunca no seu exterior. Este absolutismo científico transfere-se para o campo político, ao servir a ideologia de uma cultura industrialista que organiza a investigação “numa base competitiva”, impondo a sua obediência ao modelo vigente. Horkheimer considera, inclusive, que na ciência moderna o liberalismo e o autoritarismo interagem ao ponto de se confundirem, sacrificando o verdadeiro progresso do pensamento e do conhecimento. Vêem o mundo como um mundo de coisas e factos, recusando qualquer reflexão teórica sobre a noção de verdade: “Os pretensos factos verificados pelos métodos qualitativos, que os positivistas se inclinam a considerar os únicos que são científicos, são amiúde fenómenos de superfície que obscurecem mais do que revelam a realidade subjacente” (pág. 92). O pragmatismo e o positivismo transformam a razão num instrumento e fazem dos meios entidades autónomas, mas são produtos do iluminismo e do progresso técnico. E Horkheimer não os condena em si mesmos. Não obstante a institucionalização das contradições, a hipocrisia que se tornou cínica, considera que a afirmação da razão pragmática “foi um processo histórico necessário”, contra uma visão estática da história. O que o preocupa são as formas que esse processo foi tomando, desvirtuando, quando não impedindo, uma verdadeira emancipação do sujeito. Face à visão do progresso como ideal supremo, à idolatria do trabalho, da investigação e da invenção, e à elevação de produção a um credo religioso, a filosofia tem uma palavra a dizer, libertando o homem do medo de pensar. Eis o repto de O Eclipse da Razão, livro que também espelha a filosofia de Theodor W. Adorno (como o próprio Horkheimer salienta no prefácio): pensar, pensar, confiando no homem.

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