Gente atrás da linha do comboio

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Parece impossível. Parece impossível que ali haja gente, que ali vivam velhos, que ali morem sonhos e esperanças. Parece, de facto, que “ali” nem sequer existe, porque, à primeira vista, não há forma de lá chegar. Como explicar que numa escarpa portuense sobre o rio Douro, naquele pedaço de encosta que acaba junto à abandonada Ponte D. Maria Pia, haja pessoas mais abandonadas do que esta famosa vizinha de ferro? Como explicar que para chegar ali é preciso atravessar um outro bairro-tipo-“ilha” e passar por cima da linha de comboio por onde circulam, diariamente, as composições que ligam as estações de Campanhã e de S. Bento? Como explicar que este acesso, perigoso e escondido, seja o único que existe? O Bairro do Riobom não existe, de certeza. Mas está ali.

O Bairro do Riobom é a casa de Conceição, de Acácio, de “Didi” Preto e de cerca de outras 20 pessoas. Mudaram-se para aquele terreno escarpado, com construções esquecidas da antiga fábrica de curtumes de José Riobom dos Santos, quando já ninguém sabia exactamente quem era o proprietário dos terrenos e sem que alguém, algum dia, lhes tenha pedido renda ou satisfações. As obras, se as houve, foram feitas pelos próprios. Quem não pôde fazer nada, por falta de meios ou forças, como Conceição, ficou presa a quatro paredes de cimento cobertas com uma chapa metálica, onde deve meter medo estar em dias de temporal. E onde os dias de sol também a fazem verter lágrimas, porque sabe que aquelas paredes quase não merecem ser chamadas “casa”.

Do outro lado da linha do comboio, o Riobom deixou-se esquecer pela cidade e a cidade não se fez rogada em esquecer-se de quem vive enclausurado. O carteiro deixou de aparecer. Os baldes que fazem as vezes das casa de banho são despejados ao longo da linha, nos intervalos da passagem dos comboios. Os que agonizam morrem antes de os bombeiros conseguirem chegar ou são levados em braços pelos moradores, através da linha do comboio, através do bairro vizinho, até à rua, onde o socorro talvez chegue a tempo, vamos lá ver.

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Ainda assim, quem ali vive não desiste de transformar a escarpa com vista aberta sobre o Douro em aconchego. Quem não tem água em casa vai buscá-la aos vizinhos. Levantaram-se muros onde as pedras tinham caído. Nos bocados de terra que sobram entre as pedras crescem cebolas, alfaces, couves e favas. De Cabo Verde, país de origem de grande parte dos moradores, chegaram bananeiras e cana-de-açúcar. É certo que um dos motivos pelos quais José Riobom dos Santos instalou ali a sua fábrica de curtumes, em meados do século XIX, foi pela inclinação do terreno, que permitia que as águas sujas de lavar as peles pudessem rolar, livres, até ao rio. É certo que se desconhece a existência de análises à qualidade das terras, encharcadas durante anos por essas águas sujas que desciam até ao Douro. Um dos rectângulos de terreno de Acácio, onde deviam nascer alhos, não deu mais que uns canos raquíticos que nunca chegarão a um prato e ele acha que a razão são essas águas manchadas.

Também é certo que as cabras de “Didi” vivem no meio do lixo e se alimentam dele. “Salubridade” é uma palavra sem significado neste pedaço de Porto.

Mas os moradores insistem. Não pagam renda, não chegam drogas nem discussões (ou, pelo menos, eles dizem que assim é), têm sossego. O carteiro não entra, mas entrega as cartas numa loja próxima. Ali apanham sol com o Douro e a ponte como companhia. É para ali que as netas de Acácio correm, mal terminam a catequese ao sábado de manhã, recusando abandonar os avós durante todo o fim-de-semana. Têm 13 e 11 anos e levam com elas a irmã de dois. Sim, elas cruzam sozinhas a linha de comboio até chegarem ao sofá do avô, aos terrenos que ele cultiva, aos coelhos novos que se aninham atrás da mãe na coelheira. Elas já conhecem os horários dos comboios e, de certeza, que nada de mal irá acontecer.

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