A aldeia onde só chegou a ajuda de dois portugueses

Com o grosso das operações de resgate concentradas no Vale de Katmandu, Phaskot, tal como a maioria das localidades rurais no Nepal, estava entregue a si própria. Lara e Marco ficaram para ajudar os irmãos Rikesh e Anil.

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Dia 25 de Abril. Por volta do meio-dia, Lara Nogueira e Marco Nunes almoçam nas imediações do lago Phewa, uma das zonas turísticas mais populares de Pokhara, a segunda cidade do Nepal, quando o chão começa a tremer. Estão ambos em terreno descoberto e os únicos edifícios em volta eram cabanas de palha. Ao início nem se apercebem muito bem do que se havia passado. No Nepal, os terramotos são frequentes. Mas os habitantes locais percebem que o sismo que se sentira não era um tremor habitual. O epicentro aconteceu em Ghorka, a meio do caminho entre aquela cidade e Katmandu, sensivelmente 80 quilómetros de parte a parte. Pokhara escapa praticamente ilesa, tal como Lara e Marco.

“Começámos a ver que os locais estavam assustadíssimos, de olhos arregalados e com as crianças ao colo”, explica Lara à Revista 2, por telefone. “Nessa altura os turistas estavam mais calmos do que os próprios nepaleses. Depois percebemos o porquê. Eles não sentiam um sismo tão grande há 80 anos. Os mais velhos eram crianças, nem se lembram. Ou seja, das pessoas de lá, nunca ninguém tinha vivido um terramoto daquela dimensão. Nos dias que se seguiram vieram dormir para a rua. Estavam cheios de medo.”

A história de Lara e Marco começa em Portugal, a 8500 quilómetros de distância. Marco terminava o mestrado em Ciências Cognitivas e Lara, arquitecta paisagista, acabara há dois anos o mestrado em Engenharia Agronónima. Lara trabalhava num projecto de reabilitação social no hospital Júlio de Matos, o Tiliascoop, e Marco na Biovilla, uma cooperativa de turismo e agricultura sustentáveis. Mas, de resto, as perspectivas de trabalho não eram muito felizes. Ele, 31 anos, e ela, 32, decidiram abandonar os empregos, sair do país e viajar. Havia alguma coisa nas poupanças e, depois de semanas de planeamento, o casal partiu. Viajaram pela Índia durante um mês antes de entrar no país vizinho.

Nepal, 8 de Abril. Marco e Lara viajaram de cidade em cidade até chegarem à capital, Katmandu. É lá que conhecem dois irmãos nepaleses, Rikesh e Anil Thapa. São ambos naturais de Phaskot, uma pequena aldeia com cerca de 300 habitantes a três horas de viagem de Katmandu, para leste, que sobrevive sobretudo à base da agricultura e da criação de gado. Marco e Lara planeavam passar apenas uma noite na casa deles, mas acabam por ficar quase seis. Partem depois para oeste, por onde planeavam entrar novamente na Índia, mas mantêm-se em contacto com os dois irmãos. Ao cabo de duas semanas chegam a Pokhara. No dia seguinte, o terramoto explode com um impacto mortal. 

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Aldeia de Ebi, a cerca de 60 quilómetros para nordeste de Katmandu PRAKASH MATHEMA/AFP

Ninguém o poderia prever com exactidão, embora já há muito se esperasse um sismo de grandes dimensões no país. O Nepal está acima da linha por onde a placa tectónica da Índia se vai enterrando sob a placa euroasiática, numa tremenda progressão de 45 milímetros por ano. É, por isso, uma das zonas com o maior risco sísmico do mundo e calcula-se que um grande terramoto atinja o Nepal a cada 75 anos. O último já se passara há pouco mais de 80, em 1934, com 8,3 pontos de magnitude. Um quarto de Katmandu ficou então destruído e morreram entre 10 e 12 mil pessoas. A aritmética deu uma folga de pouco mais de cinco anos ao país.

Pokhara é uma fracção da devastação causada pelo sismo. Passadas três semanas, as autoridades nepalesas contaram já mais de oito mil mortos e cerca de 19 mil feridos em todo o país. O sismo atingiu com severidade o Vale de Katmandu, a zona com maior densidade populacional, e, sobretudo, as zonas rurais nas montanhas, onde aldeias inteiras ficaram devastadas pelo abalo e pelas mais de cem réplicas que se sentiram desde então. As estradas foram bloqueadas com deslizes de terra e escombros. Milhares de pessoas ficaram completamente isoladas nas suas aldeias, sem socorro para os feridos, comida, água e abrigo. O Governo do Nepal percebeu imediatamente que não dispunha de meios para lidar com o desastre e pediu ajuda à comunidade internacional.

Depois do terramoto, Pokhara ficou numa situação de relativa normalidade. Lara e Marco pensam em Rikesh e Anil e na sua aldeia. Tentam contactá-los no próprio dia, mas as ligações telefónicas estavam em baixo. Só no dia seguinte conseguem falar com Rikesh, o irmão mais velho. Estão a salvo. A sua casa em Katmandu ficou com algumas fendas, nada de muito grave, mas confirma-se o pior para Phaskot. Rikesh pinta então a Lara e Marco o retrato que, passadas quase duas semanas, contará à Revista 2, por telefone, num inglês sofrido do qual pouco, muito pouco, passava pelas falhas de rede.

“Nada restou da minha casa. Até as fundações desapareceram. Tudo caiu numa fracção de segundo: a nossa casa, o nosso gado, as nossas colheitas. As pessoas mais novas estão à chuva, nos campos, à procura das colheitas que não ficaram destruídas. É muito, muito difícil. Perdemos tudo.”

Não houve mortos em Phaskot, apesar de a maioria das casas terem desabado. Das cerca de 100 habitações na aldeia, 70 caíram. Eram as casas das famílias mais pobres, construídas da maneira tradicional, com pedra, madeira e barro. Mas mesmo sem mortos ou feridos graves, Phaskot teria agora de abrigar mais de uma centena de desalojados, com falta de comida, água potável e sem materiais para construir acampamentos. Com o grosso das operações de resgate concentradas no Vale de Katmandu, Phaskot, tal como a maioria das localidades rurais no Nepal, estava entregue a si própria.

Face ao apelo de Rikesh, Lara e Marco decidem ficar no Nepal e ajudar a aldeia. A vontade inicial era ir imediatamente para Phaskot e, uma vez lá, contribuir para os trabalhos de reconstrução. Mas cedo se apercebem de que não teriam dinheiro suficiente para comprar materiais, comida e os medicamentos de que a aldeia precisava. Havia ainda uma agravante: os seus vistos de turistas perderiam a validade no dia 8 de Maio. Teriam de esperar até esse dia para renovarem as autorizações e para isso teriam de ir para a fronteira com a Índia, no Sul. E isso significaria que, ao longo desses dias, a população de Phaskot ficaria sem apoio. 

Tal como Rikesh fizera com eles, Lara e Marco lançam um apelo aos seus amigos. Através do Facebook pedem dinheiro para ajudar a aldeia. Em pouco mais de duas horas, conseguem 300 euros. No dia seguinte eram já quase mil. Depois, as contribuições começam a cair. Como explica, a mensagem deve ter chegado por enquanto apenas “aos amigos e aos amigos dos amigos” – o apelo mantém-se, contudo, e Lara continua a aceitar doações através do seu Número de Identificação Bancária: 0035 0736 00010 8982007 3.

5 de Maio. Marco e Lara vão a Lumbini, uma das principais cidades de peregrinação budista no Nepal, a apenas 20 quilómetros da fronteira com a Índia, para renovar o visto. É lá que a Revista 2 fala pela primeira vez com o casal, a poucos dias de viajarem para a aldeia de Rikesh e Anil. Desde então, os contactos são diários. Com Lara e Marco, ou com Rikesh, que viajara para Phaskot imediatamente depois do terramoto.

No dia seguinte, a 48 horas do início da viagem, Lara explica as suas expectativas. “Estou ansiosa. Acho que vai ser duro. Há cinco anos houve um terramoto no Haiti e ainda estão a reconstruir. Mas quanto mais ajuda [houver], mais fácil será para eles. Estamos cheios de vontade de ajudar.” O plano do casal português é passar três meses em Phaskot e auxiliar no que for possível.

As placas de zinco para ajudar com o isolamento da água são o material mais o material mais procurado no momento antes da chegada das monções DR
Das cerca de 100 habitações na aldeia, 70 caíram DR
Não houve mortos em Phaskot, apesar de a maioria das casas terem desabado DR
“Nada restou da minha casa. Até as fundações desapareceram. Tudo caiu numa fracção de segundo", diz Rikesh DR
As casas das famílias mais pobres, construídas da maneira tradicional, com pedra, madeira e barro, desabaram DR
O grosso das operações de resgate concentraram-se no Vale de Katmandu, Phaskot, tal como a maioria das localidades rurais no Nepal, estava entregue a si própria DR
De repente, Phaskot teria de abrigar mais de uma centena de desalojados, com falta de comida, água potável e sem materiais para construir acampamentos DR
O plano do casal português é passar três meses em Phaskot e auxiliar no que for possível DR
O exército nepalês foi oferecer uma tenda à aldeia. Mas como não chegava para todos os desalojados, a aldeia recusou DR
Mesmo com o apoio de dezenas de países e organizações humanitárias, há milhares de pessoas no Nepal que não têm acesso a socorro DR
Quem tinha mais dinheiro construiu casas com tijolo e cimento, mas não recebe lá nenhum dos desalojados DR
A primeira vez que a aldeia recebeu algum tipo de ajuda depois do sismo foi com o dinheiro angariado por Lara e Marco DR
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As placas de zinco para ajudar com o isolamento da água são o material mais o material mais procurado no momento antes da chegada das monções DR

Enquanto Lara e Marco esperavam pelos seus vistos, Rikesh enfrenta com Phaskot o isolamento em que caíram as zonas rurais no Nepal depois do terramoto. Rikesh só consegue comprar comida, água e medicamentos para a aldeia quando recebe a primeira transferência enviada por Lara e Marco, ainda em Lumbini: cerca de 500 euros que permitiram dar sustento à aldeia por alguns dias. O resto dos materiais e mantimentos serão comprados em Katmandu quando Lara e Marco voltarem do Sul.

Foi a primeira vez que a aldeia recebeu algum tipo de ajuda depois do sismo. Viesse ela do Governo ou de uma organização humanitária. Apenas uma excepção: no dia que se seguiu ao terramoto, o exército nepalês surgiu na aldeia com uma tenda, uma apenas, para oferecer a quem perdera a sua casa e dormia na rua. Mesmo quem não perdera a sua casa optava então por dormir ao relento com o receio de que uma réplica forte acontecesse durante a noite. Uma tenda não chegava para todos. Nem perto disso. Revoltados, os habitantes de Phaskot recusaram a única ajuda que o Governo do Nepal lhes oferecera.

Mesmo com o apoio de dezenas de países e organizações humanitárias, há milhares de pessoas no Nepal que não têm acesso a socorro. É um dos países mais pobres da Ásia e há décadas que vive em clima de instabilidade política e social. Atravessou uma década de guerra civil que terminou apenas em 2006, cujas marcas ainda se fazem sentir na organização política do país. Desde 2008, por exemplo, que o país tem uma Assembleia Constituinte sectária que até ao momento foi incapaz de aprovar uma nova Constituição.

O Governo mobilizou a polícia e a quase todo o seu exército de 100 mil efectivos para ajudarem com as operações de resgate. Mas isso não tem impedido a população nepalesa de protestar contra o executivo e de o acusar de estar a fazer pouco.

Esse sentimento de revolta é palpável em Phaskot, “há treze dias sem comida ou sem tendas disponíveis. Há seis dias que chove continuamente sem termos um telhado sobre as nossas cabeças”, conta Rikesh à Revista 2 numa altura em que Marco e Lara estão já em viagem para Katmandu. “Ninguém nos ajuda”, prossegue, “toda a gente diz que nos vai ajudar, a Cruz Vermelha, blá, blá, blá”. “Aposto que a Cruz Vermelha nunca foi às pessoas que precisavam de ajuda e que o dinheiro vai todo para as pessoas que têm poder no Governo, ou para quem trabalha nas organizações.”

9 de Maio. Lara e Marco chegam a Katmandu. Encontram-se com Rikesh e Anil na capital para comprarem comida, água e materiais para construírem tendas. Arrendam uma carrinha de caixa aberta e partem para Phaskot.

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Reconstrução de casa nos arredores de Lalitpur Navesh Chitrakar/REUTERS/

À chegada à aldeia, a população quer saber de onde vêm os estrangeiros. Ou, melhor, quer assegurar-se de que não fazem parte do Governo. Dizem a Rikesh, segundo o que ele contará depois aos dois portugueses: “Se são teus amigos, podem ficar. Mas não chamem o Governo.” Distribuem a ajuda. Segundo as suas contas, deve dar para 35 famílias durante 15 dias. Não se podem comprar mantimentos em grande quantidade. O período das monções está prestes a chegar e há o risco de a água se infiltrar pelas tendas rudimentares e apodrecer os alimentos.

Pelos olhos de Lara e Marco, Phaskot é uma aldeia dividida entre velhos e novos, pobres e menos pobres, mas em que sobre todos pende o presságio das monções. A prioridade é, por isso, melhorar os rudimentares abrigos de pano e bambu que a população construiu antes da chegada de novos materiais. Usam-se agora troncos e placas de zinco para ajudar com o isolamento da água.

Estas placas de metal são o material mais procurado no momento, diz-nos Marco, e, se não fossem as doações, os habitantes de Phaskot não teriam dinheiro para as comprar. Servirão para se alargar alguns dos galinheiros que sobreviveram e assim alojar as dezenas dos que não têm tecto. Não há outra alternativa. Quem tinha mais dinheiro construiu casas com tijolo e cimento, mas não recebe lá nenhum dos desalojados. “Parece-me a mim que quem está bem não vê nenhuma necessidade de estar pior”, diz Marco. O casal português está a viver num dos três acampamentos, divididos intuitivamente por grupos que já se conheciam. Marco e Lara estão com os familiares de Rikesh e com mais sete outras famílias.

Quando chegaram, não sabiam o que esperar. As pessoas são amigáveis e de confiança, diz Marco, mas o desastre deixou muitos deles sem vontade. Quando atende o telefone, no seu terceiro dia em Phaskot, tinha acabado de deixar a casa do tio de Rikesh, onde tentavam recuperar algumas coisas dos destroços. Enquanto o faziam, o tio começou a chorar.

“Há dois sentimentos evidentes. Encontram-se na rua pessoas com o olhar perdido. O Rikesh diz que os mais velhos preferiam ter morrido. É com os mais novos que está tudo a andar, mas não há muitos como eles.”

Entre Junho e Agosto choverá quase todos os dias e nada garante que mesmo os abrigos que estão agora a ser construídos sobrevivam. Marco acredita que não e a população da aldeia parece partilhar das suas dúvidas. A água, que entretanto tem chegado à aldeia através de uma nascente — é depois fervida e bebida como chá — vai tornar-se um problema grave com as chuvas. As doenças respiratórias vão alastrar-se e as latrinas improvisadas vão ficar a descoberto. Não se sabe quem sobreviverá às monções de entre os mais velhos e os cerca de 10 bebés com menos de um ano de idade. Marco resume: “A esperança deles é sobreviverem às monções para depois reconstruirem as suas casas”.

Em Phaskot sobrevive-se. Sobreviveu-se ao primeiro e fez-se o mesmo com o segundo grande terramoto. No dia 12 de Maio, uma poderosa réplica de 7,3 pontos de magnitude explodiu por entre as mesmas placas que vagarosamente se vão deslizando, cumprindo ano a ano os seus costumados cinco centímetros continentais. Na quinta-feira contavam-se mais 80 mortos, mas as contas não eram ainda definitivas. Phaskot escapou novamente à mortandade.

Marco e Lara estavam numa cidade a algumas horas de viagem de Phaskot. Compravam material para distribuir pela aldeia quando a réplica se deu. Escaparam novamente sem ferimentos e, numa questão de minutos, viram as ruas da cidade encherem-se de lonas e bambus. O medo surgira novamente. Regressaram a Phaskot, mas não foi medo que viram. “Apesar de terem perdido tudo, agora sentem que a vida tem muito valor. No acampamento em que estamos este novo abalo desencadeou uma celebração da vida com direito a arroz doce”, conta Lara à 2. As casas periclitantes e as quase caídas caíram agora por completo. Mais ou menos 10, segundo Rikesh. Quanto a Governo e organizações humanitárias, parecem ainda não ter reencontrado o caminho para Phaskot desde que lá foram oferecer uma tenda e que de lá voltaram com ela ainda nos braços.

Notícia Corrigida no dia 19 de Maio: Alteradas informações biográficas.  

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