O futuro agro-industrial do passado da vanguarda

Ali no Coronado, na cintura industrial da zona rural entre Maia e Trofa, um quinteto de rapazes reúne-se para imaginar viagens cósmicas. Hightower, o segundo disco dos Equations, é krautrock trazido da década de 1970, do meio das vacas, para o século XXI. E é um portento.

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VERA MARMELO

Não, Toto, não estamos no Texas. Nem na Alemanha da década de 1970.

Estamos em Coronado, concelho da Trofa, na zona agro-industrial da cintura externa do Porto – ou por outra: estamos na mente de rapaziada nascida na zona agro-industrial da cintura externa do Porto e que um dia, graças às más influências da internet, sonhou com teclados atmosféricos, canções de seis minutos com três ou quatro partes diferentes, em que um refrão é um acidente e um solo de guitarra se explica mediante complexas equações matemáticas. Estamos no universo do krautrock transposto para o Portugal pós-império do século XXI. Estamos em Hightower, o segundo e recém-lançado disco dos Equations – e a crer na quantidade de explosões por faixa das duas uma: ou é o fim do mundo ou acabámos de chegar a Marte. Ou então é um concerto na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, onde a banda apresente hoje o álbum.

O Zé pode ajudar a explicar isto. Zé é Zé Pedro, baterista e um quinto dos Equations, cujo restante alinhamento é completado por Vitor Barros (guitarra e, agora, teclas), Bruno Martins (voz, ex-guitarra, e agora sintetizador), Gonçalo Duarte (guitarra) e José Cordeiro (baixo). Tanto Zé Pedro como Bruno e Vitor vêm da zona de Coronado; Zezé, isto é, José Cordeiro, é de Braga, mas vive no Porto. Gonçalo é de Lisboa e é uma adição – surgiu depois de Frozen Caravels, a estreia dos Equations, em 2009. É irónico: a banda acrescentou um guitarrista; posto isto deu uma guinada sonora e agora os sintetizadores – como se nota pela descrição acima, do que cada um tocava antes e toca neste momento – são proeminentes.

Houve uma boa razão para Gonçalo se juntar à banda: é que já depois de Frozen Caravels estar feito a banda notou que “não dava para tocar o disco ao vivo só com dois guitarristas”, pelo que era necessário encontrar um terceiro. Mas, quer dizer, pergunta-se, porque raio é que uma banda de Coronado, Trofa, se vai dar ao trabalho de fazer concertos? Há alguma alminha interessada em ouvir uma banda de Coronado, Trofa?

Parece que há. “Nós “demos bastante concertos”, conta o Zé, “Mas passámos ao lado dos media”, completa, antes de ir verificar ao computador os números e concluir que foram “à volta de 50 concertos”. O facto de ele ter os dados todos alinhavados poderia não ter significado algum, não se desse o caso de o Zé ser estudante de engenharia electrónica – por experiência podemos garantir que este tipo de pessoas são picuinhas. O que se nota na música: há algo de matemático nas harmonias, nas progressões, algo que Zé – contrariando o habitual discurso romântico dos músicos, que normalmente professam que tudo o que fizeram aconteceu por acaso – diz ser “consciente e propositado”.

Mas neste momento ele está ao telefone do Porto a contar que os Equations fizeram “uma digressão pela Europa, em Setembro de 2013”. “Foram15 dias em Espanha, França, Bélgica e Holanda. Nunca tínhamos feito uma digressão assim, éramos uma banda completamente desconhecida e a recepção foi bastante melhor do que estávamos à espera. Os nossos melhores concertos foram nessa digressão. Pagaram-nos menos a mesma coisa que o que nos pagam em Portugal – mas a adesão foi muito superior”.

Como dois dos membros da banda já trabalham, eles têm de marcar digressões para as férias. As digressões são o habitual para bandas pequenas: “É mandar milhares de emails, esperar respostas, tentar negociar e tentar fazer com que percamos o mínimo dinheiro possível. Alugámos uma carrinha e fomos por aí. Dormimos no chão de squats, casa ocupadas por punks. Há um certo sacrifício, mas isso é um dado adquirido a partir do momento em que tens uma banda em portugal e queres comer: vais ter de sacrificar algumas coisa”.

Na altura da digressão eles já andavam a magicar a guinada que se sente em Hightower, um disco com que nem sonhavam quando se conhecerem há uma década. Zé, Bruno e Vitor – que andam todos pelos 24, 25 anos – encontraram-se pela primeira vez “numa escola de música em Coronado”. Zé vem de um lugar ainda pequeno, “da freguesia do Muro”. Viviam ali, num “conjunto de terras entre a Maia e a Trofa”.

Zé tinha uns 14 anos; foi aprender música mas “aquilo não era o conservatório, nem nada que se pareça”. Para se ter uma ideia: quem lhe dava aulas era “um primo em segundo grau”. “Íamos mandar umas guitarradas e partilhar bandas de rock: Nirvana, Pixies, Stone Roses, Cure, Metallica. A net ainda não estava 100% espalhada em todo o lado, não chegava aqui. Aquele indie dos 90s era o que havia”.

Hoje Bruno trabalha em Coronado, a vender peças de motor de tractor e Vitor é engenheiro civil e trabalha numa empresa de consultoria de transportes públicos. Zé está a tirar o mestrado, enquanto Zezé Cordeiro estuda música e Gonçalo estuda ilustração e banda-desenhada e vai fazendo uns trabalhos.

Os três de Coronado montaram a primeira banda, como precisavam de um baixista recrutaram um rapaz da escola e assim ficaram durante uns anos, até que o moço saiu e aí apareceu o Zezé. Não o conheciam de lado algum, “mas na altura já havia o Facebook” e foi graças a um anúncio na rede social que o baixista surgiu, mesmo a tempo de entrar no primeiro disco.

Desde o primeiro encontro, os gostos dos rapazes haviam mudado – ou ampliado se quiserem. “Estávamos muito virados para a cena do math-rock e do pós-hardcore”, explica Zezé, descrevendo o que é uma espécie de pós-pós-rock mais agressivo que o pós-rock e tão agressivo quanto o rock. “Éramos miúdos, queríamos tocar muito rápido, músicas com muitas partes. E o problema de compor com essa mentalidade é que depois percebemos que não dava para tocar ao vivo com apenas quatro músicos”. E daí surgiu Gonçalo, que “é de Setúbal e que costumava organizar concertos – conhecíamo-lo daí”.

Em Frozen Caravels “já havia teclados, mas dissimulados entre as linhas de guitarra”. Agora o quinteto queria “que os sintetizadores tivessem um papel mais proeminente e liderassem as músicas”. E de facto, eles estão por toda a parte: a abrir Atmos

Every thought was a grain; por trás da linha de guitarra de Afterlights; no sonho drogado de Slow trials; a erguer Echoing green aos céus. Lembramo-nos dos Cluster, dos Tangerine Dream, dos Amon Duul II. Apesar dos sintetizadores ainda há riffalhada da grossa e não é por acaso que Xinobi, o produtor, recorda os Black Mountain. Hightower tem a ambição de soar grande, de ser um monumento – e soa a um grande monumento teutónico e psicadélico.

Zé não acha “que seja um disco retro”. Admite que “hoje em dia há uma grande tendência de revivalismo da onda psicadélica, na música, na fantasia espacial nos filmes do cinema mainstream, até nas roupas”, mas ao mesmo tempo eles tentam pôr o seu cunho, que é do nosso século. Ele dá um exemplo simples: “As baterias são muito pouco progy ou psicadélicas, são de agora: são bastante marteladas, mais gingonas, não são da década de 70”. O groove de Echoing green ou de Slow trials dá-lhe razão.

Por outro lado é o primeiro a admitir que desde que a rapaziada foi introduzida “ao rock progressivo, ao kraut, surgiu a ideia dos sintetizadores”. “Tivemos de nos artilhar. Fomos comprando sintetizadores aos poucos, porque são caros”. Com graça, acrescenta: “Felizmente quem toca os sints são os dois gajos que trabalham”.

Uma das formas que os Equations tiveram de “diferenciar o [seu] som” foi abordar este universo com as mesmas premissas com que até então haviam lidado. “Nós temos um lado racional, matemático e lógico. É algo que sempre teve na nossa forma de compor. No discurso pop há um estigma contra a racionalidade. Connosco a racionalidade está sempre presente. Mas racionalizar o processo de criação não é fazer verso-refrão-verso: é saber ir e voltar. Temos de deixar transbordar os mantras, subir, ir para todos os lados – mas também é preciso saber quando é altura de regressar à terra. E na realidade isto não é assim tão frio – trata-se apenas só de reouvir o que fizemos e avaliar. Isso não tira valor às canções. Não as desvirtua”.

Que as canções sobem e explodem, disso não há dúvida – os dois últimos minutos de Slow trials são todos lá em cima. Que eles conseguem encontrar o caminho de volta à terra, idem. Que têm a exacta noção de como agarrar o ouvinte, isso basta atentar nas linhas de sintetizador e guitarra e no groove da faixa-título.

Mas nada melhor que darem hoje um pulo à Galeria Zé dos Bois em Lisboa, para tirarem dúvidas. No dia seguinte os Equations actuam em Leiria, dia 27 no Porto e mais datas virão. Entretanto eles continuarão numa antiga sala de escritórios da zona industrial da cintura Maia-Trofa a ensaiar viagens cósmicas do Coronado sabe-se lá para onde.


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